Encontros e desencontros: A busca de Pilar – Capítulo II


— Pilar, você já organizou esses documentos umas três vezes neste mês! E eu já te disse que praticamente ninguém vem aqui para procurar identidade, nem CPF!

— Eu sei! Eu sei! É que eu gosto de ver as coisas organizadas… se deixarmos os documentos em ordem alfabética, fica mais fácil encontrar caso alguém resolva, um dia, vir buscar.

— Olha, esses documentos ai estão guardados há pelo menos vinte anos! Nessa altura essas pessoas já tiraram a segunda via, deve ter gente aí que até já morreu!

Nina gostava de sua nova amiga de trabalho, mas a mania de organização de Pilar já beirava a loucura! Ela ficava horas vendo e revendo as identidades e a separar mochilas, sacolas e casacos, chegava ao cúmulo de cheirar roupas, as esquecidas! Bem, cada doido com sua mania, e olhando assim bem de perto, ninguém era normal mesmo! Pelo menos a nova colega não chegava atrasada e também nunca se importava quando precisava sair mais cedo. Há duas semanas que conseguia chegar a tempo para as aulas na faculdade. Por mim ela pode até comer as roupas que nem ligo! Esse era um pensamento recorrente de Nina, funcionária do setor há seis anos, tempo suficiente para ver muitas jovens passarem por ali e cairem fora o mais rápido que podiam! Com Pilar não seria diferente… mas Nina não era muito de se preocupar com a vida dos outros, desde que a sua corresse muito bem, obrigada! Era este o seu lema!

— Escuta, quer almoçar comigo no baiano? Hoje é dia de feijoada.

— Não, obrigada Nina! Eu trouxe minha marmita.

— Não sei como você aguenta comer todo dia de marmita! Credo! Me dá arrepio até de pensar na comida toda misturada e fria!

— Já estou acostumada… e depois gosto de ficar por aqui mesmo.

— Não é por nada não, miga, mas eu não consigo achar graça nenhuma em ficar parada, de pé, na saída dos vagões! As pessoas só faltam te atropelar, menina! Vamos dar uma voltinha no centro e paquerar as vitrines. Eu te espero almoçar, vamos!

— Obrigada Nina, mas vou ficar aqui mesmo, gosto de ver as pessoas passarem, sabe, alimenta minha esperança.

— Que esperança é essa, menina?

— É uma longa história… Acho que nem vale a pena saber…

— Já me disse isso mil vezes! Acho que você quer pegar o seu namorado no flagra.

— Não, não tenho namorado. Vai Nina, me deixa aqui, porque é isso a coisa que eu mais quero no mundo!

Após almoçar, Pilar fechou o escritório e foi para a sua rotina do olhar. A certeza que se fez maior do que ela mesma, a acompanha e com a vitalidade arrancada da esperança, espera.

Todos os dias uma multidão atravessa o portão, avança pelos corredores e desemboca na rua. Um vai e vem estonteante, porém Pilar consegue captar fragmentos de rostos, nariz, franjas e muitas mochilas penduradas nas costas de tantos apressados. Mas o que ela precisava mesmo, era captar o olhar. Essa janela infinita do universo de vários mundos particulares. Não era fácil! Às vezes alcançava um olhar insistente e o peito aquecia como se fosse atravessado por um raio infravermelho. E não foram poucas as vezes em que correu atrás de um e de outro, sempre fazendo-se notar e simulando um balé desajeitado, esbarrando ou simplesmente parando à frente de totais estranhos, somente para comprovar o que o inconsciente já previa: a negação.

Invariavelmente voltava para o trabalho arrasada, adormecida pela frustação. Sabia que não seria fácil, um rosto na multidão… e nem tinha a certeza de que Pedro estava no Rio. O infinito mundo, o inescrutável Brasil. A cada dia, um pixel de esperança se apagava em seu espirito. Tinha medo dela toda apagar-se. Se já estava difícil com saúde, se afundasse em angústias, ninguém a tiraria de lá! Nesses momentos costumava apegar-se à sua promessa, mas havia dias como este, em que as nuvens baixas demais, esmagavam o espaço e a pressão agia no peito e no espirito. O peso da desesperança era tanto que ela sucumbia num cantinho qualquer do depósito. O alivio possível, não era um choro de tristeza, ou de dor. Ao contrário, era uma avalanche de decepções acumuladas, de solidão disfarçada, de desamparo preenchido com pontas de ilusões. Pilar erguia os braços e não conseguia encontrar nada a que pudesse se amparar…

— Ei, ei, ei… o que é isso, menina?

Nina sabia que o momento era só para ações, de nada adiantaria fazer perguntas. A dor era visível e sem pensar, envolve a amiga num abraço sem fim.

Aos poucos Pilar foi se acalmando… as duas ainda ficaram abraçadas, em silêncio, por um momento impossível de se registrar dentro do emocional. A respiração regularizou e ela levantou-se sem graça, alisando a blusa na tentativa de recompor o que sobrara de sua aparência e dignidade.

— Que falar sobre isso? Nina soltou a questão no ar.

— Não quero. Nem um pouco… mas preciso!

— Bem… nós temos até as sete.

Pilar então revelou sua história, sua busca, e no mesmo pacote, sua solidão! Nina ouviu todo o relato calada, nem uma única vez, interrompeu. Esperou pacientemente que Pilar se recuperasse a cada crise de choro e também atendeu a todos os telefonemas e entregas de material ao longo da narrativa. Ao fim, Pilar sentia-se leve, como se além de chorar, também tivesse vomitado toda aquela história que tanto doía na boca do estômago!

— Agora entendo porque você fica todo dia por horas vendo as pessoas saindo e entrando nos vagões! Mas… é quase impossível que você encontre seu irmão desta forma!

— Eu não sei explicar, mas todo dia quando vou para lá, tenho a certeza de que vamos nos encontrar!

— Oh Pilar, me responde uma coisinha… você por acaso já procurou seu irmão na internet?

— É… não!

— Como não? Pilar! Então você julgou que seria mais fácil ficar dias e dias no mesmo lugar, por horas, em pé, para encontrar o seu irmão? Criatura, em que século você vive?

— Ah, Nina, não sou tão atrasada assim. É que os últimos dois anos da minha vida, fiquei totalmente voltada para manter o meu pai vivo! Morávamos de favor na casa de um estranho e totalmente sem dinheiro! O ex patrão do meu pai, nos dava uma cesta de alimento por mês e celular era um luxo que não poderíamos nem sonhar!

— Mas, na casa de sua tia não tem internet? Ninguém nunca pensou em te ajudar?

Os olhos de Pilar encheram-se de lágrimas, e ela deu um longo suspiro na tentativa de, com o ar, conseguir falar minimamente… no meio do gesto, Nina interrompeu.

— Ok, ok, não precisa dizer mais nada. Lá a barra também está pesada, né?

— Sim e não – Pilar esfregava os olhos na tentativa de conter as lágrimas – É que sempre que eu toco no assunto, minha tia começa a falar que meu irmão é um ingrato, que é o culpado pela morte do meu pai… e ela fica tão revoltada que eu até evito tocar no assunto. E também não gosto que ninguém fale mal de meu irmão!

— E seus primos? Eles não te ajudam?

— Meus primos? Para eles sou somente mais uma para ter que dividir o quarto! Mal nos falamos. Na verdade, evito até olhar para eles!

— Mas, Pilar, qualquer pessoa tem um celular atualmente! Porque não compra um para você?

— Eu até queria, Nina, mas como compro com esse salário mínimo e ainda ajudando minha tia com as despesas da casa? Eu nunca consigo chegar no final do mês com dinheiro!

— Nem você, nem ninguém que eu conheça, meu bem! O negócio é o seguinte… amanhã vamos na loja e você compra um celular à prestação! Vinte e quatro meses para pagar, se for o caso!

— Mas, para que um celular? Nem tenho para quem ligar!

— Agora você tem, pequena! Liga para mim!

Pilar fez uma cara de vazio. De quem ainda não comprou muito bem a proposta.

— Agora vamos à ação! Pilar, como é o nome do seu irmão? Perguntou enquanto sacou o celular do bolso.

— É Pedro Silva de Oliveira. Vai procurar ai? Na internet?

— Pedro… Nina repete o nome enquanto digita.

— Então? Pilar pergunta aflita. Encontrou algum?

— Eita! Encontrei, “miga”, mas vamos ter muito trabalho, porque o senhor Google nos deu mais de seis milhões de resultados e um desses, com certeza, é o seu irmão!

Comentários

Postagens mais visitadas