Banquete vazio



Naquela noite pairava no ar uma pressão atmosférica intolerável, não conseguia dormir. A janela escancarada e um medo horrível de ser atacado por alguma barata aventureira fugindo do calor. Tomei outro banho, desta vez não tirei a roupa e, molhado, sentei no chão. Estiquei-me bem, como um felino aproveitando a cerâmica fria. Meu corpo, febril, esquentava rapidamente o chão. Rolava feito engrenagem de máquina primitiva e monótona, para frente e para trás, insistentemente, buscando o frio que se renovava com minha ausência. As pálpebras inferiores ardiam, e à direita da janela já começava a ver, no horizonte, o tom cinza que precede o amanhecer. Não sei se consegui dormir, quando vi na varanda, uma camada de papel, como panfletos, de cor e conteúdos indefinidos, não estávamos em época de eleição nem de Copa do Mundo, nada que justificasse esta estranha revoada de papéis. Intrigado, me aproximei e, quando cheguei perto, fiquei me perguntando quem seria capaz de fazer uma piada de mau gosto e sem propósito, como aquela. Espalhadas, pela varanda, notas de um, dois, cinco, dez, cem, todos os valores existentes. Peguei uma, e comecei a verificá-las, tentando entender o que estava acontecendo. A aparência era muito próxima da nota real. Não resisti ao impulso de compará-las com as notas em minha carteira. O papel, cor, formato, tarja de segurança, o tato, não havia dúvida, estava diante de notas e notas de dinheiro verdadeiro e corrente. Açambarquei o máximo que meus braços conseguiram e corri para o quarto, jogando o dinheiro em cima da cama. Voltava à varanda e juntava outro bocado. Preocupou-me o vento que, se soprasse, poderia levar umas tantas notas. Certifiquei-me de que não havia ficado nem uma nota sequer na varanda e fui para o quarto. Enrolei, cuidadosamente, o dinheiro no lençol e dormi. Não sei se por medo ou precaução, sonhei que perguntava aos vizinhos, quem teria deixado voar uma quantidade tão expressiva de papel moeda. Acordei suado, um calor absurdo e meu apartamento totalmente fechado. Abri, ansioso, a trouxa feita com o lençol e lá estavam as notas, embrulhadas, amassadas umas nas outras, como folhas que varremos em qualquer terraço e amontoamos em uma pá. Comecei a contar o dinheiro e separá-lo em montes do mesmo valor, meticulosamente. Havia ali uma quantidade que daria para comprar um apartamento, um carro, só não sabia por onde começar, decidi que abriria uma poupança. Procuraria um apartamento com calma. Um frio passou pelo estômago ao pensar na procedência daquele dinheiro, poderia ser fruto de roubo, tinha a numeração, e eu poderia estar entrando em uma enrascada. Resolvi, então, guardar e aguardar. Pronto. Desci as escadas, para tomar café na padaria - ironia, teria de economizar, tinha pouco dinheiro na carteira – aproveitaria para escutar comentários sobre algum assalto nas redondezas ou coisa parecida. Ao sair da portaria, dei um passo para trás, o chão, como em um grande outono, estava forrado de notas, de todos os valores, exatamente como na varanda. Abaixei-me e peguei um bocado, fui enfiando nos bolsos, até não caber nenhuma nota. Não tinha mais o pudor de arrumá-las, ia socando, como dava. Percebi todos fazendo o mesmo. Um catador de lixo, incrédulo, jogou na rua, todo o conteúdo de sua carroça, e, junto com seus filhos, pegou tudo o que podia, com um sorriso ansioso e nervoso nos lábios. Meus vizinhos iam descobrindo o que estava acontecendo e chamavam seus familiares, todos desesperados tentando apanhar o máximo de notas possível. Pareciam galinhas, naquele movimento de abaixar e levantar, ciscando e repetindo os gestos. Percebi que não havia carros e ônibus circulando, nem guardas de trânsito. Na padaria, o dono, histérico, gritava que não receberia o dinheiro da rua, somente o antigo, mas nem ele, nem ninguém conseguiria diferenciar o antigo do novo. No supermercado, a multidão comprava tudo o que via pela frente e os funcionários gritavam para seus patrões que não trabalhariam mais; seus salários de um ano, uma vida de balcão estava ali, no canteiro, em cima do toldo da loja, na copa das árvores, em todos os lugares, distribuídos de forma farta, para todos, ao alcance das mãos. Vi uma mulher eufórica, chorando no orelhão, contando que finalmente tinha dinheiro para visitar a família. Tonto, voltei para casa. Descobri, perplexo, que não havia mais porteiro no prédio. Liguei a televisão. Todos os canais falavam, enquanto mostravam imagens de pessoas na rua juntando dinheiro, imobiliárias abarrotadas de clientes querendo comprar seus imóveis à vista; os proprietários desesperados, dizendo para não vender, ainda não! Filas intermináveis nos caixas eletrônicos, outros optaram por depositar logo o dinheiro em suas contas. Cada um movido por suas prioridades. Todos com ar de festa. Para a maioria das pessoas seu grande problema estava resolvido. No mesmo dia, não havia um só empregado para serviços de limpeza em nenhuma casa ou empresa. Depois seriam os funcionários de escritórios, boys, motoboys, secretárias, e, por último, os patrões, que, sem ninguém para chefiar, desistiriam. Quase surtado, saí de casa e fui fazer compras, nem me preocupei em levar dinheiro, poderia ir catando pela rua. Virei a esquina e vi que não conseguiria entrar no mercado, uma grande confusão na porta, todos querendo entrar, filas enormes e os produtos desaparecendo das prateleiras. Continuei meu caminho, à procura de outro mercado. Via as lojas lotadas, não importava o ramo, lojas de roupas, calçados, livros, tudo, tudo, tudo. Os comerciantes, eufóricos, num balé entre o balcão e o caixa, tentavam acumular todo o dinheiro possível, pois se acabasse a chuva, já estariam com uma boa reserva. Parecia um Natal gordo. Parei em frente a uma vendinha e entrei, ainda que me acotovelando com as pessoas, consegui pegar leite e pão de forma, a desorganização era tanta que saí sem pagar, ninguém reparou. Dormi, nesta noite, vencido pelo cansaço, o burburinho da cidade, a excitação dos vizinhos e suas vozes altas ficaram distantes. Perdi, por algumas horas, a minha relação com o mundo. Acordei tarde, senti fome novamente, e saí, como um animal, à caça de alimento. Nas ruas, desertas, incrivelmente sujas, havia todo tipo de lixo pelo chão, embalagens de comida, latas de bebidas, caixas vazias, roupas usadas, móveis velhos, tudo largado, amontoado pelas calçadas, sem valor. Parecia que o dia havia amanhecido de uma grande festa, e que, a qualquer momento, os garis viriam para colocar tudo em ordem com suas eficientes vassouras, mas quem limparia aquilo tudo? Não havia mais ninguém para servir. As únicas pessoas trabalhando, seriam as que sentiam um grande prazer por estar executando seu trabalho. Quem continuaria? Andei, me desviando dos objetos abandonados, do lixo, das pessoas que ainda dormiam, embriagadas. O comércio estava fechado, talvez não abrisse. Segui, as ruas me levando para frente, me empurrando, todas estavam iguais: sujas e abandonadas. À minha frente uma avenida extensa, vazia.

Comentários

  1. Joana, eu amo este conto. Você escreveu ele há muito tempo. Não sei porque mais ele diz muito.

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  2. Às vezes damos mais valor para moedas do que para pessoas, e afinal, o que é o dinheiro senão papel?

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