Lugar intermediário


Não sei se estava desacordado ou simplesmente tive um lapso de memória. O que seria? Confesso que até hoje me pergunto. A visão intrigada com as seguintes palavras: coloca-se saltinho em cinco minutos. E aquele desenho de um salto agulha, super feminino, martelando em minha cabeça, podia ouvir o som metálico picando meu cérebro. Mas, o que incomodava mesmo eram as cores escolhidas para o cartaz; vermelho e amarelo, tão comuns...Como é que poderia estar pensando em cores e anúncios se nem ao menos sabia onde estava... Era isso, olhava ao redor e tudo me era indiferente, estava enterrado no centro de alguma cidade, mas não sabia qual, e muito menos como havia chegado ali! Decidi, por espírito de sobrevivência, andar um pouco e tentar entender onde me encontrava e para onde poderia ir. Esse centro, não se diferenciava de outros que já conhecia, com suas gentes andando como formigas que se perdem do rastro, iam e vinham desordenadamente; camelôs com uma infinidade de produtos; pedintes espalhados pelas calçadas e prédios altos, velhos, modernos, decadentes...
Devo ter andado por mais de uma hora, fazendo algumas descobertas importantes, a principal é que se falava a minha língua. Diante de uma padaria, senti o estômago reclamar de fome e entrei para um cafezinho, ou quem sabe até um pão com manteiga. Em meu bolso algumas notas emboladas, tinha até muitas, fui ao caixa, pedi um pão na chapa e uma média, depois de matar minha fome imediata veria o que mais poderia comer. A expressão da moça do caixa me desanimou, sua cara era de pura interrogação, olhava para mim, olhava para aquilo que eu julgava, até aquele momento, como sendo dinheiro, balbuciei alguma desculpa e sai, ela me seguindo e me julgando com o olhar... Precisava andar, precisava clarear a mente e entender o que estava acontecendo.
Já era noite fechada quando conheci Maria Lucia, estava deitada em um canteiro, seu olhar boiava em um largo espaço entre os cílios superiores e inferiores, falou-me da cidade, de sua vida, e da procura incansável pelo ex-marido, desaparecido há três anos. Ouvia seu relato, nauseado, tentando me esquivar do hálito viciado de fome e dentes estragados, tudo impregnado do ranço intenso da bebida. Fiquei imaginando se também não estaria com um hálito assim, forte, massacrado pela fome, ou sujeira, ou mesmo por dentes estragados. Já não sabia quem era, nem por quanto tempo vagava, me destruindo, sem valores nem moral, até chegar ali, quanto tempo teria passado? Nesse exato momento tive a primeira impressão do que eu era, lembrava exatamente de minha imagem: rosto, corte de cabelo, dentes, e por mais incrível que pareça, até da roupa que usava – camiseta verde e calça jeans. Mas era só isso, embora esse “só isso”, naquele momento significasse minha vida inteira!
Fui arrastado para uma casa, tão suja e mal cheirosa quanto sua dona, e, mesmo assim, foi ali que comi alguma coisa semelhante a um caldo aguado de feijão, foi ali que satisfiz meus instintos sexuais imediatos, e foi ali onde dormi. Ao acordar sentia a saliva envenenada, grossa, com uma memória alcoólica intolerável. Sai da cama cuspindo minha noite, e o único aconchego recebido até aquele momento, em dias, meses, anos? Saí fechando a porta com força, sentindo as lágrimas, tão grossas e quentes quanto a minha saliva descendo pela face de um estranho. Maria Lucia ficou na cama, tão infeliz quanto adormecida, um triste sorriso ameaçando no rosto. Talvez nem ligasse, talvez nem soubesse, mas era para lá que voltaria todas as noites.

Comentários

  1. Um café, uma média com pão numa padaria.
    Andar por aí numa rua...
    É você.

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