Mãe de família


Só se reparou nisso porque o garoto que brinca, inocentemente, com o carrinho, no final da rua, disse que era rotina. Ninguém havia reparado antes, ninguém ligava.
Movia-se pelos aposentos de sua casa como se fizesse parte da mobília, entrava e saía silenciosa, invisível, se era enxergada, talvez, seria para alcançar um copo de água ou descarregar um cinzeiro lotado de pontinhas amareladas, ao lixo. Seu nome não importava.
A vida escorria como uma rotina suave e morna e assim seguia. Café da manhã para a barulhenta família, almoço voraz ao meio-dia-em-ponto, lanchinho da tarde, e, um mistério até a hora do jantar, que já pronto, esperava guardadinho no forno, cuidadosamente, embrulhado em papel alumínio.
Talvez tenha sido por isso que ninguém ligou muito quando o jantar não estava à mesa naquela terça-feira. Os mais espertos descobriram logo que alguma coisa cheirava bem no forno, e bocas, e garfadas eficientes devoraram tudo o que se encontrava pela frente. Mas, ninguém voltou para organizar a louça que se espalhava pela pia, mesa, fogão, e até uns tantos pedaços de alumínio pisados se espalhavam pelo chão, já quase decalcados à cerâmica rugosa da pequena cozinha.
O marido foi o primeiro a se incomodar, com passos pesados percorreu toda a casa à caça do motivo de tamanha desordem e imperdoável mudança. O ar era quase de guerra, o caos totalmente estabelecido e uma família boquiaberta tentando se achar aos tropeções, sem iniciativa para o momento. Os mais céticos saíram desanimados, talvez comessem algo por aí, alguns levaram para o lado pessoal e procuraram a valer por toda a vizinhança e nada. Uma desaparição audaciosa que mexia com estrutura de sete ou oito pessoas.
A única pista era o menino que sempre a via sair, exatamente, às quatro da tarde, alisando a saia e olhando para os lados, andando apressadinha para o final da rua, ignorava o ponto de ônibus, seguia direto, até sumir, ou até alguma coisa desviar o olhar do garoto da saia justa marrom andante.
O mesmo percurso foi feito pelo marido, pelos filhos e agregados, enquanto andavam, olhavam para o chão, fixamente. Talvez algum objeto, um grampinho que fosse... E todos voltavam ensimesmados, no nada dos descobrimentos.
Não que a casa estivesse impossível de se entrar e as bocas famintas escancaradas ao céu em vão. O problema foi resolvido por uma gordinha quase limpa e bem barata, que não era nenhuma maravilha, mas fazia o que comer e cobrava pouco, muito pouco.
Uma cisma circunfluente insistia, derramava volumosamente ao redor dos familiares para depois volatilizar e renovar o ciclo em novas suspeitas, todas infundadas, que a mãe, o que uma mulher, tão pouco afeita à descobrimentos, fazia, diariamente, caminhando na direção ao nada, até perder-se?
No horizonte foi pregada uma cruz, as iniciais cuidadosamente inscritas em cor púrpura, talvez morta, talvez não... nos boletins de desaparecidos seu rosto, numa antiga fotografia sorri, quase imperceptível, com o cantinho da boca, para sempre.

Comentários

  1. Conseguiu enfim a liberdade desejada por tantas mães exploradas pela família.. Afinal, morreu ou desapareceu apenas?
    Saia justa marrom andante. Gostei disso.

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