Sobremesa...

Agora sabia que já não poderia voltar atrás. Entre uma garfada de feijão e outra de arroz, vi aquela sombra repugnante movendo-se entre as travessas, rápida e ágil, andando assim agachadinha, quase que deslizando sobre a mesa, com seu ar de culpada. Fui tomado por uma irritação ancestral. Olhei para os lados e, em consideração aos esfomeados das mesas vizinhas, abaixei o olhar fingindo para mim mesmo que aquela criaturinha não estava por ali zanzando sobre a mesa. Se aparecesse novamente poderia dar um tapinha com as costas da mão e jogá-la no chão. Novamente o garfo à boca, e como se estivesse em uma cena ensaiada, passa veloz da travessa de arroz para a de salada e lá em baixo se esconde. Soprei forte e vi que caiu da toalha, isso me aliviou, continuei o almoço tranqüilo; ora uma bocada de arroz, ora feijão, ora macarrão, enfim, um comercial saboroso. Já estava acabando meu prato, satisfeito, nos últimos bocados, todas as travessas raspadas, quando a vejo, desta vez foi impossível não levar para o lado pessoal, a atrevida, cara a cara, me desafiando, com seus olhinhos escondidos naqueles óculos escuros cafonas, modelo secular. Prendi minha respiração e, acho que inconscientemente, baixei meu braço com força bruta naquele ser castanho e empoeirado. Cravei, bem no meio de suas costas, não deu tempo para nenhuma reação, a guerra estava vencida. Lentamente, ainda sem respirar, num impulso bárbaro triunfante, a trouxe bem para perto dos olhos. Com uma expressão de guerreira que não se rende, me encarando fixo, os dois dentes do garfo atravessando seu acebolado corpo, suas pernas em um abre e fecha, quase como um balé, suas anteninhas no mesmo ritmo morno. Fiquei ali, hipnotizado, começava a escorrer, pelo garfo, um líquido grosso, branco, mais parecia uma espécie de sobremesa feita com leite. Refleti a possibilidade de comê-la e, para meu espanto, naquela hora, não sentia repulsa. Comecei a achá-la atraente, suas perninhas, já lentas, abrindo e fechando suavemente convidativas, parando... parando... irresistíveis... Agora sabia que já não poderia voltar atrás, abri a boca e, num movimento rápido, decidido, introduzi o garfo, puxando-o vigorosamente para fora, deixando minha sobremesa entre os dentes. O que senti, foi um gosto adocicado, a fiz girar em minha língua, sentindo a textura de suas asas, a saliência das perninhas encolhidas. Demorei-me ali, apertando com delicadeza seu corpo entre minha língua e o palato, seu suco espesso, escorrendo pela garganta, suavemente. Em poucos minutos só restou o invólucro coriáceo. Mordi, sentindo a casca se romper, o abdome e as perninhas se esfarelaram na boca como as de um crustáceo. Engoli os remanescentes pedacinhos com a ajuda da língua, até não sobrar nenhum vestígio de sua existência. Como se saísse de um transe, espiei cauteloso para os lados. Esperava que todos estivessem espantados, bocas abertas, horrorizados, me olhando. Mas não, comiam, silenciosos, em seus mundos, enigmáticos. Sacudi incrédulo a cabeça. À minha frente um pratinho de sobremesa mostrava restos de um manjar, não me lembrava de ter pedido essa sobremesa. Levantei a mão, chamei o garçom, paguei a conta e, ao arrastar a cadeira, uma barata voou da toalha em direção ao meu colo. Dei um pulo para trás, saí rápido derrubando um copo. Uma criatura me seguia.

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