PONTO DE RESTAURAÇÃO

Aquele ponto. Ponto. Final, conclusivamente, fechando ciclos, sonhos, promessas. Afinal, no fim, ao lado do meu nome, dando credibilidade à minha assinatura. Não preciso dizer palavra. O documento estirado, um leve tremor, os pelos excitados, unhas precisamente pintadas para a ocasião.

Desço, os andares passando rapidamente em relâmpagos sucessivos e nervosos. Na rua ainda me dou ao trabalho de olhar em volta, estaria estampado na testa? Acabei de comprar um apartamento, vista para o mar, uma fortuna!! Será que estou com cara de boba?? Respirei me controlando, a cabeça, lateral, latejava. Precisava de um café. Andei passos lentos, respiração controlada, me chamando a todo instante para dentro dos acontecimentos. Por que sempre que acontece alguma coisa muito boa para mim é assim? Não consigo chegar ao cerne do sentimento, ao miolo cru, ainda fermentado, grudado, onde está a essência. Fico por aqui, circulando, por fora e por mais que me esforce, que feche os olhos e esprema, nada!

O jeito é ir andando para ver se os acontecimentos me chegam. A tarde está nublada, o vento salpica areia e maresia em mim, a sensação é desagradável, apresso os passos levando, novamente, a mão para dentro da bolsa, sinto as chaves frias e, ao sacudi-las, o som metálico toca como um sino, algum prenúncio.

Chego distraída e luto com as chaves que não correspondem ao buraco à minha frente, enquanto o vento me empurra contra a grade, e os cabelos, sem ajudar, se enfiam nos olhos, boca, chicoteando o rosto… venço a luta e entro. Meu lar.

O porteiro olha desconfiado, sempre fui desajeitada com as pessoas, principalmente empregados, devolvo um olhar mais desconfiado ainda, quase me denunciando: invasora. Invasora de meu lar, meu território. Escorrego para dentro do elevador, deixando para trás a oportunidade de me apresentar ao porteiro e parecer uma pessoa normal.

Agora não há publico, somente eu e as quatro fechaduras tetra, enfileiradas na vertical, posso tentar e errar e tentar novamente, não há vento, não há pressa. Entro. O eco dos saltos martelando os ambientes: sala, cozinha, quartos, banheiros... o apartamento não é só caro, é grande também, muito. O trilho da janela é suave, desliza preciso, convidativo, o mar é o limite.

Um passo recuando o olhar, uma barreira negra, uma malha noturna não me permitia ver. Sem mar, sem horizonte, sem ar e quase sufocando com a surpresa à minha frente. Sento no chão e me recupero do susto, mas, o que era aquilo? Espero minha razão voltar e vou intuitivamente, adivinhando que a janela estava coberta por aquela malha negra, que me tirava a vista, a primeira “boa impressão”, a alegria, o ar. O prédio estava em reforma.

Apenas dois dias separavam minha visita ao apartamento com o corretor, da compra, e o prédio já estava em reforma? Tirando meu direito de gozo de vista, sentir que havia empregado bem meu dinheiro? E agora? Que se dane a fachada caindo, as infiltrações, não dava para esperar mais um mês? Terei de me conformar com esta eterna vista xadrez, negra e mole para o oceano?

Murmurei uma pergunta a respeito do tempo da obra para o zelador e ele, espertamente, me respondeu com um antipático levantar de ombros. Aquele gesto correspondia a meu mau pressentimento, meu mau comportamento, meu mau dia.

O ar gelado que vinha do mar era, agora, bem vindo, atravessei a avenida e pedi um café no quiosque, com certeza meu estômago ia sentir. Enquanto tomava o café aos beijinhos prudentes para não queimar os lábios, observava a fachada do prédio, o engraçado é que não conseguia me lembrar de como ela era. Qual a cor, formato, e olha que era meu trajeto para o escritório, isso sem contar que caminhava com muita freqüência na praia, certamente, olhando todos os prédios de frente para o mar, sonhando com o meu… como pode uma malha negra, uma reforma abalar tanto uma pessoa? É só uma reforma, só isso!! Só?? Era o meu sonho, o meu prédio, a minha mudança que iria chegar no outro dia, jogada pelos cantos do apartamento coberto com sua imensa burka negra.

Por todos os lados havia móveis, cadeiras, sacos, caixas, tudo embaralhado como o começo de algum jogo. O jogo da minha existência. Em cada caixa jogada aqui ou ali, havia o pedaço de um dia vivido, um acontecimento, uma fotografia, uma viagem… meus livros foram parar no banheiro, os sapatos, na cozinha, tinha muito trabalho pela frente, muito. Inaugurei meu próprio jogo, que eu jogasse então, e bem!

Já estava há quatro horas abrindo caixas e colocando-as em seus respectivos ambientes, o ar no apartamento estava muito viciado, o cheiro das caixas abertas misturadas ao forte e persistente suor dos carregadores, me davam voltas no estômago, não havia uma só janela fechada, o dia era frio, mas não entrava um sopro de ar para refrescar o apartamento. Desci para aliviar minha cabeça que já ameaçava latejar…

No começo foi assim, tentei ignorar a fachada negra e sufocante. Arrumei o apartamento com exagerado apuro, comprei rosas, tapetes novos, uma mesinha de centro para completar o amplo espaço da sala de estar. Ficou lindo!! Pensei em chamar uma ou outra amiga, mas, não tinha coragem, desanimava convidar alguém para jantar no novo apartamento, com vista para o mar, e ter de ficar com tudo fechado e ainda com o ar ligado, pois o ambiente ficava muito pesado, embora fosse inverno. Os dias lindos lá fora, o céu de um azul quase desaforado e a nitidez das formas do horizonte alimentavam ainda mais uma estranha aversão que estava começando a desenvolver por todo o conjunto de acontecimentos.

Já no escritório, os dias eram tranqüilos, trabalhava concentrada e minha dedicação, agora, beirava a obsessão. Resolvia com uma rapidez absurda a pilha de processos que estavam amontoados sobre minha mesa a cada manhã. Nunca vi os clientes tão satisfeitos!! É que começava a desenvolver um ponto de fuga, quanto mais tarde chegasse em casa, melhor. E quanto mais cansada…Todos esse ritmo de trabalho sem folga e a eterna insatisfação em me cobrir, a cada noite, com o véu negro e opressor da reforma de meu novo lar, me venceu, cai doente, de uma enfermidade inexplicável para qualquer médico, menos para mim, que sabia exatamente, o dia e a hora que aquele vírus invisível havia penetrado em minha circulação, percorreu meus aposentos, dormiu confortável em lençóis de algodão, ignorando se dividia ou não a cama comigo.

Aquele ponto, afinal, me venceu. Precisava sair dali, virar a página, melhor, tentar achar um ponto de restauração possível, na seqüência dos acontecimentos.

Eternos sete dias separavam a minha decisão de vender o apartamento, deste dia em que pontuo às avessas, agora desfazendo o ponto, devolvendo, empacotando, delegando a outrem o final, com o dedo nervoso apertando vigorosamente a tecla “del”, até não restar mais caracteres manchando aqueles dias passados.

Desço calmamente as escadas do cartório, do mesmo cartório de há oito meses, alguém deve estar sorrindo com cara de bobo, também… um apartamento de frente para o mar, não é motivo pequeno. Ando feliz, ainda, mesmo me lembrando da carta recebida ainda esta manhã, que comunicava o fim da reforma para a próxima semana e, enfim, a retirada dos tapumes.

Comentários

  1. Isso é verdadeiramente um pesadelo! Ironias do destino

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  2. E por falar em tomar um café...
    Mais um conto com a sua cara. Maravilhoso. Bom de ler. Lindo Joana, parabéns!

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