em Brasília

, tudo deserto, uma mulher remexe o lixo, levanta os sacos e vai furando, rasgando, buscando restos de comida, como animal, abre, espalha o lixo e o abandona. Os sacos com suas feridas fétidas, abertas, expostas. Duas crianças com olhar vazio esperam o que reciclará sua mãe. Saem em matilha até outro prédio. Estou no terceiro andar, lá embaixo tudo embaçado, a paisagem opaca, fundida na poluição suspensa, deixada pelos quase três meses sem chuva. Respiro. O ar pesado faz seu percurso com esforço, arde em meus pulmões. Um homem deitado, sua roupa suja mesclada com a grama seca, ambos desidratados, procura o abrigo em uma árvore que insiste em florescer, reflorescer em espasmos de desespero, sem água, dando o último de si, flores que cairão mortas, esperando setembro. Ele, entorpecido, indiferente, no meio de um longo sono, desmaiado. Calor insuportável que vai dando um banzo nas pessoas, uma inércia, vontade de nem andar. Vejo a tarde passar vagarosamente, enormes ponteiros se arrastando sem ar, conformados como os moradores mutantes de Brasília. Entro para tomar um copo de água e logo sou atraída, como mariposa, pela luz, para a janela. O ar pesado e a poeira suspensa, o tempo está parado, fecho os olhos e escuto um carro aproximando-se, desliza lento pela quadra, passa pelos quebra-molas devagar, como se houvesse uma tração contrária, as rodas moles quase derretendo no asfalto quente, passam pela minha janela, os olhos de uma pessoa, imóveis, são empurrados pelo trajeto, sem ambição, desidratados, olham aquela que da janela perscruta o micro-mundo ressecado da 410 norte.

Comentários

  1. Esse é o verdadeiro período de seca. Muito bem descrito por você Joana. Chego a ficar angustiado com a maneira que você descreve o tempo em sua antiga quadra.

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  2. Hola Joana! Estoy enamorándome del portugués con tus palabras... No quiero que el desconocimiento del idioma me haga perder nada... Sigo leyendote, sigo disfrutando, sigo aprendiendo. Gracias!

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  3. É Gula, e esse incomodo hiato no tempo, sempre tão ameno de Brasília está, ano a ano se impondo mais!! Não é à toa que eu fugi daí!!!
    Venha se embeber de umidade aqui... a seca está chegando....

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  4. Hola Carolina,
    Como me gustó su visita a mi sitio... un lugar abierto para reflectir.
    Gracias de nuevo.
    Joana.

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  5. Gostei do estilo Clarice, começando com vírgula. Ousada, hein? Eu sou mais medrosa...

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