Fragmentos do Desencontro, conto





O olhar me seguia pela janela escancarada, não podia vê-lo, nem precisava. Intuía. Bastava sentir que o sol abafava um pouco mais o dia para saber que as janelas abriam suas bocas sedentas de ar fresco, na ilusão de que a brisa do mar fosse tão insistente que atravessasse todos os prédios e ruas e ainda restasse, talvez, alguma força de sua generosidade para diluir o peso que o calor provocava no ar naqueles dias de verão. Os passos teimosos, por mais que forçasse em apressá-los, agarravam-se ao chão como se fosse sua última esperança. Esquisita a vida. As pernas teriam de ser as primeiras a me apoiarem nesta decisão, e assim, como uma criança aprendendo a andar, me guiasse para frente, pé ante pé, passo a passo, como queiram. Tudo menos esse olhar me queimando a nuca. Nem precisava ver para saber que duas grossas lágrimas rolavam de seus olhos negros; seriam somente duas, porque em olhos negros não era permitido um alagar de sal e soluços. E o resto delas seria chorado para dentro, lamentando as horas de companhia que estavam sendo perdidas justamente naqueles instantes; porque às vezes era melhor deixar rasgar o tecido delicado que envolve os corpos em noites mornas de alegria. 

Precisava sair daquele lugar porque as minhas lágrimas, ao contrário, eram derramadas para fora, numa escandalosa mania de romper com tudo sem deixar nenhum tijolo que ainda pudesse resistir. E o olhar na nuca me queimava o suficiente para me prender os passos com seus braços longos e o perfume caro que exalava de seus pelos. Mas, o que seria voltar? Até quando insistiria em bater portas e sair desastradamente escada abaixo, com as roupas caindo ao longo dos andares? Até quando subir tudo de volta na ilusão de que ele estará no alto do patamar com seus olhos escuros e duros, me perdoando? E descer chorando mais ainda, me sentindo quase domada pela fúria do desprezo? Vamos, pernas desgraçadas, não podem me prender aqui nessa marca limite do romper definitivamente ou voltar mais uma vez, e outra vez descobrir que, mesmo que eu não queira, o fim já está pesando sobre minha emoção esmagada.

Escuto o arranhar dos trilhos sendo fechados. Naquele momento, todos os nós sentimentais desenrolam-se como um gigante polvo me soltando, ainda posso sentir sua pressão na carne. A janela oposta, no horizonte, brilha refletindo suas vestimentas douradas. Enfim, as pernas me obedecem, o passo inseguro mal pisa o concreto mole do meio-dia. Paro e tento eternizar esse momento. Agora posso avançar, mas respiro fundo e guardo na memória o último cheiro do nosso romance, uma mistura de vento, asfalto e multidão. 

Do outro lado da esquina, olho para trás, e ainda consigo ver minha sombra, rasgando os muitos panos que nos evolviam.

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