Cão e Circo, conto de Sandra Penna

Hoje estou recebendo em meu espaço o conto "Cão e Circo" de Sandra Penna. Na sua estrutura é um conto, mas até que poderíamos pensar na narrativa como um poema. Afinal poesia é o que não falta! Este conto me fez pensar no tempo que existe para cada coisa, e de como a vida é cíclica e está a toda hora a nos dar e tirar. Tanto que já não nos importamos tanto...




Dizem que há muito tempo morava uma mulher ali, naquela casa quieta. Um dia apareceu um cachorro, grande, branco, pesado. Dizem que ela já tinha tido vários deles, porque gostava, em geral, dos cães; alguns tinham ido embora por sua própria conta, outros desapareceram porque ela se esquecera deles e não os queria mais, alguns ela nem recebeu, outros (dizem uns, em voz baixa) ela mandara matar. Aquele era inesperado. Ninguém sabe se foi a mulher que ofereceu comida a ele, ou se foi o cão que farejou alguma coisa e resolveu entrar. Fato é que conviveram juntos muito tempo, embora às vezes ocupassem a mesma casa mas não o mesmo cômodo. Dizem que eles brincavam muito e pareciam se acompanhar, mas que às vezes a mulher o olhava desconfiada, suspeitando nele um lobisomem. O cachorro por sua vez olhava a mulher de soslaio, suspeitando nela - o quê? Uns dizem diferente, que o cão não suspeitava de nada, que ele pouco olhava a mulher; estava ali por acaso; recebia carinho, dava carinho, era só, era simples, dizem uns.
Outros dizem que não; era um cachorro estranho, angustiado, tinha pesadelos, movia suas grandes patas enquanto dormia, cachorro inconformado com sua condição canina. Se às vezes parecia muito tranquilo e confortável em seu próprio corpo e muito ciente de seu belo porte, às vezes se surpreendia trôpego e mal colocado em suas próprias pernas. Dizem mesmo que seus apelos eram tímidos e que seus carinhos não vinham nada fáceis, precisavam da sombra onde já não se sabe o que acontece, se é que acontece, se há carinho ou se não há, se é carinho ou se não é.
A mulher reparava. Não sabia que tipo de cão ele seria, cão de caça? talvez. Mas o cão não parecia saber se gostava de caça ou de caçar: tendo mordido a presa, se era pato sentia saudade do gosto do coelho; se era coelho, começava a sonhar com galinhas; fora o que caçava de gatos por lebres, quando não caçava gambás. Seria cão de guarda? não parecia;  se guardava alguma coisa, era só a si mesmo. Cão de companhia? não; inconstante e arredio. Enquanto a mulher dormia, ele ia passear, longe, ninguém sabe ao certo; sabe-se que quando a mulher acordava ele estava sempre lá, com cara de quem nunca tinha ido. Às vezes ficava no portão, olhando a rua. Mereceria uma coleira? Dizem uns que ele teria dado coices mortais e desesperados de cavalo, dizem outros que ele aceitaria mas tinha horror ao sossego doméstico. A mulher tinha outra idéia; ela não sabia por que ele estava ali, pois então que ficasse se quisesse; cada cachorro faz sua própria coleira, outras não servem; disso ela sabia por si mesma. Ela própria sempre esperara que alguém fizesse alguma coisa por ela, que a ajudasse a atar e desatar alguns nós, que a chamasse a si mesma e a deixasse em seu contorno justo e exato. Ninguém  poderia ter feito isso - por ela. O mesmo destino seria - e era só esse - o do cão.
Passavam dias e noites. O cão era desastrado e corria desabalado pelo jardim, destruindo canteiros de flores; muitas vezes se machucava, gania; a mulher cuidava com aparente e maternal paciência, mas calando uma fúria selvagem. Não queria cuidar de ninguém, muito menos de um cão tão grande, endemoniado e instável. O que ela queria, afinal? Alguns dizem que ela era intratável de tão exigente, que ela acreditava em coisas que não existem, que era uma visionária e vivia equivocada. Outros diziam que nunca houve uma mulher mais céptica. Outros diziam que ela simplesmente queria, ou não queria. E que na verdade era arisca. E que se escondia em labirintos deixando fios para algum minotauro mais decidido, mas que muitas vezes deixava fios partidos ao meio. Outros diziam que tudo isso tinha sido, não era mais, e que a mulher queria o absoluto, que estava cansada de relativismos e meias-metades, inclusive nela mesma.
Passavam noites e dias. A mulher se acalmava olhando os olhos do cão, às vezes tão manhosos, às vezes satisfeitos, às vezes tão íntegros e inteiros. Ela gostava de alguma coisa nele, de alguma coisa que o cão pouco suspeitava. Dias e noites, e o cão começou a olhar a mulher com ar de enfado. Parecia enjoado do cheiro daquela casa, de templo silencioso e casto, cheiro adocicado, quase de leite. Cheiro constante, fiel a si mesmo, era cansativo.
Um dia o cão foi embora. Dizem alguns que ele saiu seguindo uma mulher evidente que carregava pacotes de carne crua, sangrante. Dizem alguns que ele foi atrás do cheiro do mundo, que foi perder seu próprio cheiro no cheiro do mundo, cheiro vário onde cada cão se reconhece e mais se desconhece. Dizem que naquela noite houve terrível ventania, ouviram-se gritos medonhos, os pássaros ficaram aflitos e agitados nas árvores, voavam desorientados, chocavam-se uns com os outros, perdiam as penas, machucavam as asas, e voavam folhas, e quebraram-se as galhas, as árvores mesmas pareciam seres estranhos perdendo pedaços de si quando os pássaros voavam.
No dia seguinte a mulher tinha vários arranhões pelo corpo e pelas mãos, que cicatrizaram rapidamente, dizem uns, que nunca se fecharam, dizem outros. Outros dizem que na primeira noite de lua cheia a mulher se transformou numa coruja e voou para o mais alto galho da mais alta árvore da montanha mais alta e ali ficou durante anos, imóvel, os olhos acesos tentando entender a rotação da terra e os rumos do mundo. Outros dizem que a coruja às vezes descia num vôo rasante para bicar os olhos do cão, mas no meio do vôo achava tudo isso uma amolação, uma tão inseta coisa que não valia a pena, e se distraía com a lua, com o sol, com outras corujas, com o próprio vôo e suas belas asas. Outros dizem que não, nada disso - que no dia seguinte à ventania os canteiros da casa da mulher estavam floridos e intactos, que ela mesma havia florescido e saiu com sua saia florida e seu perfume de madeira cantarolando pela rua.
Do cachorro ninguém sabe. Alguns o viram alegre e fagueiro e saltitante andando para a direita, outros o viram judiado, sarnento e já sem faro, perambulando em círculos.
Ninguém sabe. Mas alguém afirma ter ouvido com certeza a mulher dizer que cada um vive e morre como pode.




Comentários

Postagens mais visitadas