Contistas nacionais - Samuel Rawet
Hoje,
ao arrumar minha prateleira, encontrei um livro do contista Samuel
Rawet, “Contos do Imigrante”, José Olympio Editora, 1956.
Engenheiro
por profissão, chegou a trabalhar como calculista na construção de
Brasília.
Com
seu livro “Contos do Iimigrante”, Samuel
Rawet conquistou o Prêmio Guimarães Rosa, no concurso de contos
instituído pelo Governo do Estado do Paraná.
Na
década de 60, era considerado um dos autores que renovavam a
linguagem literária brasileira.
Escreveu
pequena e aclamada obra, mas hoje é praticamente desconhecido.
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Réquiem
para um solitário
A
mão trêmula acariciou a porta da geladeira.
Abriu-a
autormaticamente. Costume. Um halo gelado penetrou-lhe o peito aberto
da camisa e os olhos se fecharam, como se as pálpebras tivessem sido
empurradas pela testa relaxada. Carne na gaveta de matéria plástica.
Cerveja e leite nos suportes de entrada. Travessas. Pratos de frutas.
Os dedos tentaram destacar uma uva do ramo, mas o cacho se insinuou
na palma da mão. Nenhuma vontade de comer. Sorriso frio. Hoje podia
abandoná-lo com a certeza de que amanhã, se quisesse, obte-lo-ia de
novo. Os tempos. O ruído da fechadura nem se fez ouvir. O costume do
trato carinhoso ao que lhe era caro, e a certeza das crianças
dormindo nos quartos ao lado, aguçaram-lhe a cautela. A mulher
permanecia na varanda. Ele a deixara estirada na espreguiçadeira, o
rosto balofo satisfeito, as pernas e braços pesados, frouxos,
apontando do vestido barato. (Ela pouco se acostumara à mudança.
Quase não se trasformara. O corpo relaxado traspirava cansaço e
satisfação do trabalho. Tarefa cumprida.) agora ali, parado em meio
à sala fartamente iluminada . Os reflexos nos pingentes de cristal
já o fizeram passar muito tempo num misto de absorção e
divertimento. Hoje feriam-lhe a retina dolorida, como que
chamuscando-a. Feriam mais que as palavras dofilho no canto do
escritório, após o jantar. Nunca pudera conceber que tal
acontecesse. A fartura recente embotara-lhe mesmo a agilidade de
pensamento anterior. Era-lhe um custo pensar muito. As ideias tinham
que se lhe afigurar fixas, passando em câmara lenta. E a energia
despendida há poucas horas, em que fora brutalmente sacudido (tinha
o rosto do filho à frente), não o deixavam prostado, mas, curioso,
arrataram-no desenfreadamente num caracol. Tivera a impressão de
formar, em mais de vinte anos, um bloco monolitico, indestrutível.
Encerrado em seu mundo, donde Deus andara em tempo afastado, mas que
hoje se reintegrara, julgava encontrar-se numa estabilidade
inabalável. Surdo aos ruídosde fora, vieram dizer-lhe que estava
encerrado numa teia egoísta. Mas a Ordem? A ordem das coisas das
coisas que lhe vinha insuflada dalém-mar, que lhe haviam incutido
nos anos de privação, e pela qual atravessara um oceano nunca
visto. América. Ele fizera América.
O
portão largo deu passagem ao carro que acelerou até a garagem. O
farol tingiu largas faixas nas paredes da sala e cortou-lhe um ombro.
Batida violenta. Pelos fundos os passoa apressados chiavam nos
degraus.
-
O senhor?
O
filho o parara em sua frente. Pouca coisa o assemelhava ao outro.
Pequenos traços, o canto da boca, ou dos olhos, talvez, não sabia
ao certo.
-
sim!... Vá!... Vá dormir!...
Estranhara
a sua própria dureza quando o viu afastar-se. Seus dezesseis anos
minguavam em feições de vinte. Pela porta ouviu tirar os sapatos.
À
entrada do qurto viu o filho debruçado na mesa. Um quebra-luz
limitava a área ilumindada. Não o vira jantar. Mal chegado
enfiou-se ali, sem falar com ninguém. Era a oportunidade agora,
podia falar-lhe. Os outros dormiam. Só um deles saíra no automóvel,
e, como de costume, chegaria bem tarde. As coisas que lhe boiavam no
ouvido, sussuradas aos sábados, quando terminavam as orações, nos
dias comuns, quando rondava a zona comercial, precipitaram-se agora.
O filho olhou-o, de frente. Nunca o havia feito de tal jeito. De
relance, percebeu que o desconhecia, por completo. A imagem que dele
tinha era a de anos, e em sua inércia pouco ou nada viu
transformar-se. A face rodeada por uma barba de dois dias, os traços
firmes delineando as feições, davam-lhe uma aparência até então
não revelada. A bem dizer o rosto era estranho, não tinha
lembranças de tê-lo visto. E o fitava de frente, seguro. Às
perguntas do pai não deu evasivas. Também a ele o rosto do velho
não lembrava o mesmo modo. Era como se pela primeira vez
descobrissem um no outro traços desconhecidos, ou a superposição
das vezes em que normalmente se viam desse uma impressão errônea da
realidade. O tom amadurecido da voz perdera o frescor da risada
infantil que ainda lhe soava no ouvido. E à argumentação
ponderada, concluiu, perplexo, que nada, ou quase nada, poderia opor.
Havia a ordem das coisas. Favia a tradição que o soterrava. A
solidariedade humana podia, no máximo, tomar para ele modos de
caridade. E era justo. Ninguém tem coração de ferro. Tudo isso
estava na Ordem. E o resto? As palavras do filho impediram-no de
seguir o primeiro impulso, que era esbofeteá-lo, coisa que sempre
fazia quando os pegava em falta (mas há tempos). Jamais se imaginava
enredado de tal jeito, a mão tolhida pela expressão firme que o
mirava. Os olhos desviaram e desenharam na parede memórias antigas.
Na terceira classe amontoado com mais vinte sobre sonhos de uma terra
que o esperava, remoía desejos e planos na certeza do homem de mãos
vazias e cabeça tonta.
A
mulher atrás, grávida, acenando chorosa, amparada nos pais e tios,
à saída do trem. Solitário no porto apinhado de guindastes,
girafas meneando o pescoço no vaivém dos fardos. Pensamento
ritmado, contraponteando à marcação das máquinas. Várias
gerações se lhe antecediam naquele impulso. Depois a sensação
gigantesca de conquista, de grilhão rebitado. E a inércia que não
é o cansaço, mas a fartura, da vitória, da segurança em bloco. O
silêncio do filho trouxe-o de volta ao quarto e sentiu os pés
agarrados aos tacos lustrosos. A luz dirigida parecia imobilizá-los
num contraste branco-preto de desenho a nanquim. Cama à esquerda,
armário ao fundo, cortinas abertas trazendo um vento da praia não
muito distante.
No
espelho do consolo, enviezado, o corpo baixo, as mãos jogadas rente,
as mangas arregaçadas da camisa.
-
Ainda acordado?
A
mulher esfregava o rosto sonolento, passando para a cozinha. Pratos,
torneira da pia, tampa de panela soando no chão, a porta da
geladeira batendo.
-
Quer um copo de leite?
-
Não!
-
Não vai dormir?
A
mesma de há alguns anos. Na mesa uma carta estendida, relato
impiedosode um mundo que foi. Duas horas. Madrugada. Zunidos de pneus
no asfalto. Em algum lugar um rádio em surdina. (céus! Como não
endoidecer!...) Das casas, nada mais que ruínas. E nos bosques dos
arredores há valados e valados de corações roídos pelas balas, e
há galhos de castanheiros que resistem ao balanço de olhos
esbugalhados. Buzina. Resto de boêmia numa voz embebedada. Badalo
curto e fundo do quarto de hora. Procisão de rostos, esfumaçados
uns, dolorosamente nítidos outros, avô, tio, primo, barbas ralas e
majestosas nem titubear de preces em Juízo Final. (Céus! Como não
endoidecer?) Por que não se abalaram todos, como ele, num porão de
navio? Por que, no cais, ao invés de abanar lenços, não correram
pranchão acima? O canto do tio, a faca cortando o couro no desenho
de um sola, fundia-se às pancadas, em compasso, do primo e do
auxiliar, nas formas das botinas. Lá fora o vidro embaçado, o frio
gelara os vãos do calçamento. Ideia de neve recente. Na mesa a
chaleira despejando um halo quente de conforto. A tia na mesa
cortando rabanetes. Uma quentura estagnada. Páscoa. Pentecostes. Ano
Novo.
Irremediável.
Na
parede o grupo sorria. Retrato antigo. Os menores não haviam
nascido. O que se lhe revelara sorria molemente. Fragmento. O cabelo
arrumado pela primeira vez depois de cortados os cachos. Vida de
então. Dois quartos antulhados de berços e um odor de urina
escapando das fraldas ensaboadas. O fim da tarde surpreendia-o com o
corpo empapado. Suor e poeira. Lama, nos sapatos, das vielas
beira-de-morro. Andar. Andar. Andar. O passo chapinhado, a língua
estranha. Latidos de cães em pancadas de porta. Às vezes, à mesa
de algum café, sanduiche na mão, sentia desejos de arremessar dos
ombros o fardo e embalar oceano afora, com o pingo amargo da América
revelada. Besteira. Que diriam se o vissem, cabisbaixo, vencido,
descer da carreta que o transportara para o trem? Por que saira?
Outras vezes os arremedos dos moleques despertavam-lhe as mesmas
ideias. Depois se acostumara. Nem o apelido coletivo o feria mais. À
noite, relaxando o corpo ao lado da mulher, amparava-se do medo de
que a América o estava arrasando. Outros que vieram com ele não
resistiram. Foram para o interior. Que será deles? Teriam
prosperado,na certa, comprado fazendas. Mas como? Queria trabalhar em
sua profissão. Desenganaram-no. Você morre de fome, não serve para
isso! Em vez de um banco, um balcão, deram-lhe o bairro, as ruas, as
casas, a cidade. É sua. Sirva-se! A princípio impressionara-se com
a pobreza, não dele, que sabia transitória, mas dos que servia. Os
barracos pungentes, imundos, o aglomerado em farrapos, favelas,
pareciam-lhe soltos, prontos a ruir a um sopro maior do vento.
-
Que tem você, está doente?
A
mulher em camisola. Acordara de repente, mais de quatro horas, e não
o vira.
-
Está doente?
Cotovelos
fincados na ponta da mesa, o rosto encaixado na palma das mãos,
mirava-a sem preplexidade. Silêncio maciço entre os dois. Nem o
ruído do relógio furava a massa de espaço que separava um do
outro. Que responder? Do fundo não lhe vinha nada. Não estava
embaraçado. Sentia-se como no dia em quelhe apresentaram a
hipotética noiva. Nenhum embaraço, também. Apenas um vazio de
palavras, um não saber a razão da fala no momento.
-
Sente-se mal?
Pouco
a pouco sentiu o sangue afluir-lhe à cabeça. Agora sim, uma
vergonha perturbava-o diante da companheira. Nunca lhe teve segredos.
Nunca a deixara longe de suas preocupações. Mas, agora? Que dizer?
Seria possível compor, pedaço a pedaço, os fluxos de ideias,
desordenados, dar-lhes um fio, torná-los história que se conte em
palavras? Depois, dizer o quê? O espaço diminui, e vê o corpo da
mulher agigantar-se em sua direção, invadindo a sala. Sente-lhe as
mãos caírem nos ombros; na frente, só a porta aberta; postara-se
atrás dele. Seus dedos pesam-lhe em torno do pescoço.
Dizer-lhe
o quê? Ela fazia parte do bloco monilítico sonhado por ele, era
parte do todo. Compreenderia? E ele? Havia compreendido?
-
Sente-se mal?
-
Não... não tenho nada!... Estou sem sono!
-
Como?... são quatro horas, mais que quatro, e você nem se deitou.
-
Já disse, não tenho sono.
-
Quer que lhe faça um chá?
-
Não!
-
Uma pílula, quer?
-
Não! Por favor, não quero!
Nunca
lhe vira os olhos como dessa vez. Gigara em torno da mesa, e
novamente o fitava em cheio. No rosto nenhuma expressão de
sonolência ou cansaço; uns traços de vivacidade despontaram, e os
olhos, os olhos adquiriram um vigor nunca imaginado. O que lhe ia
pela mente? Meneava a cabeça como que sondando algo.
-
Eu?...
-
O quê?...
-
Eu... nunca o vi assim... nem me tratou assim... quase estranha...
Pode
perceber – de relance – onde queria chegar. Sorriso triste.
-
Não!... Não é isso...
Contar-lhe
a história simplestemente? Impossível. Tomou-lhe as mãos. Ambas
frias, inseguras. Faltavam-lhe palavras, coisas que gostaria de
dizer, que nunca disse, porque não sabia como, ou não lhe haviam
ensinado.
-
Vão mal os negócios?
A
voz da mulher tornara-se grave.
-
Não!... Ao contrário...
Olhos
cruzados. Que turbilhão de ideias não a confundiam? E era simples
desfazer-lhe a dúvida. Simples? Que lhe diria? Que não se
preocupasse, que não estava doente, que os negócios iam ótimos,
quê mais? E o resto? Como comunicar-lhe a sensação de
seboroamento? Como dar-lhe a ideia de insegurança que o dominara,
substituindo solidez arrogante?
-
Por favor, vá dormir!... Eu irei já... Não tenho nada.
Um
sorriso no rosto da mulher. (Tinham ainda entrelaçadas as mãos.)
Atmosfera de conforto. Tepidez de madrugada penetrando o íntimo.
-
Eu devia imaginar... Deve ser alguma nova empresa que está
planejando, não é isso?
A
imobilidade da cabeça e um ligeiro chiado dos lábios afiguraram-se
como afirmativa.
-
Devia imaginar. Não se preocupe!... (Oh, o peso do braço que
acaricia...) Deus há de nos ajudar!
Deus
há de nos ajudar! Novamente a porta de quarto fechada. Nada mais!
Ela não o podia conceber de outra maneira. Era a presença sólida
do que se esfacelava para ele. Deus há de nos ajudar. Doíam-lhe as
pernas. A língua parecia estar coberta de uma massa esponjosa de
sujeira. Alguma outra empresa. Sim. Por que não? Havia outro motivo,
com excesão de doença, que levasse um homem a dobrar a madrugada
solitário numa sala? Uma vez ficara, há anos. A carta chegara e
comela uma onda de remorços e imagens. Depois, o amortecimento.
Nunca se lhe esboçara a pergunta do por que teriam morrido. Sabia
que coisas acontecia pelo mundo, mas nunca as julgara tão
importantes, a ponto de perturbar a sua Ordem, a ordem dos seus
acontecimentos e problemas. Do parapeito vio o pequeno jardim bem
tratado, e em sua frente, o bloco de edifícios cinzentos encolhidos
em sono. Uma ou outra luz borrando de amarelo o conjunto. Talvez
alguém madrugasse para o trabalho, ou chegasse de farra, quem sabe.
À esquerda um arcabouço em descanso. Os andaimes vazios de
operários. Doze andares ocos à espera de paredes.
Carros
ladeando o meio-fio. Repouso. Certeza. As imagens que vieram com a
carta também tinham a carteza. Aprendera com eles. Esfacelava-se. O
vento que lhe penetrava a camisa secando o suor trouxe uma pausa ao
atordoamento.
Poucas
vezes vira o amanhecer. E mesmo assim, nunca lhe dera importância.
Agora aterrava e aliviava, alternadamente, como um êmbolo de pistão.
Horizonte irisado. Gradação imperceptível até o vermelho
infernal. Nada mais tinha a pensar. No íntimo a convicção de que
continuaria procedendo como sempre, implacavemente. Mas nos passos
qeu o levaram ao quarto, titubeantes, não pelo cansaço, conduzia
outra certeza, uma certeza de desequilibrio e hesitação, de medo e
fragilidade. Certeza do irremediável. A mulehr dormia. Mudou de
roupa. Aspirou o cheiro do linho na gaveta da cômoda de onde tirara
o pijama. Olhou em redor, fixou os móveis trabalhados. E mergulhando
a cabeça no travesseiro levava consigo a imagem do que viera
construindo e que sentia escapar dos dedos. Tentava agarrar, como os
olhos cegados pela pressão, os pedaços de sua ordem que
desmoronavam mas compreendeu o inevitável. Inerte, corpo morto,
prostação. Dormia.
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