"A medida do bastante', de Dag Bandeira
Hoje estou recebendo em minha coluna "Contista convidado", a escritora Dag Bandeira.
Autora do romance Visão Distorcida, Dag tem o dom de narrar uma história e circula muito bem nos campos da narrativa curta.
O conto A Medida do Bastante foi originalmente publicado pela revista literária, Sobrecapa Literal. Vale uma visita ao site para assinar e ficar antenado com o mundo da literatura. É grátis!
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Foto de Christian Inoferio |
Aquele senhor de
aparência tranquila terminava o lanche da tarde, ocupando sozinho
uma mesa de quatro lugares. Não havia outra desocupada.
Perguntei-lhe se podia me sentar. Gentil, sorriu e com um gesto da
mão apontou-me um dos lugares. Sem prestar atenção nele,
saboreando minhas frutas, entretinha-me com meus pensamentos. Foi
quando o ouvi dizer, um descanso à tarde é necessário, essa vida é
tão frenética. Só então percebi que ele havia terminado. Com as
mãos cruzadas sobre a mesa, olhava-me, com um semblante calmo, como
se fôssemos velhos conhecidos. Não sabia se queria estender a
conversa e me surpreendi dizendo, eh, o corpo nos avisa quando
precisamos parar. Prossegui comendo, e aquele homem grisalho, de
modos elegantes, continuou. O meu trabalho me exige muito, sou da
área de consultoria financeira, não posso parar ou cometer erros e
ainda cuido de minha mãe, em cima de uma cama, com Alzheimer. Ele
dizia tudo isso, sem me conhecer, mas com tranquilidade. Tinha uma
única certeza, precisava dar-lhe voz. Não senti pena. Mais do que
qualquer coisa, ao ouvi-lo, observava antes minhas reações. Mantive
o silêncio exterior, só o exterior, porque o fluxo de pensamento
corria solto. Naturalmente sou loquaz. Os amigos dizem sempre que
falo bastante. E qual seria a real medida do bastante? Naquela
tarde, estive por descobrir. Dei voz ao desconhecido, não sem antes
confortá-lo, não sofra, trate-a bem, porque agora ela só precisa
de carinho. Ele continuou, tenho também uma filha esquizofrênica.
Naquele momento, fiquei mexida e sentia aflorar dentro de mim toda a
verborragia de meu temperamento. Contive-me e busquei então
dizer-lhe o que qualquer um diria: mas as pessoas assim, não ousei
repetir o termo esquizofrênica, se medicadas, levam uma vida normal.
Eu sei, retrucou, mas ela recusa o medicamento. A placidez e a doçura
teimavam em fazer morada no discurso daquele homem. Fixando meu olhar
no dele, procurei falar sobre os benefícios dos exercícios físicos
para aliviar as pressões do cotidiano. Cheguei mesmo a pensar, ele
deve estar percebendo meu grau de informação. Senti vergonha. Mais
uma vez, a calma em pessoa falava, houve uma época que nadava, disse
ele, mas agora é quase impossível. Meu tempo não me pertence mais.
Você mora por aqui?, arrisquei e, sem pausa, acrescentei, há uma
academia muito boa neste shopping. Procurava enxertar em minhas
palavras e no olhar algum otimismo. Sabia que não era o que ele
precisava, mas só tinha isso para lhe dar. Senti-me inútil ante o
sofrimento alheio. Ele continuou, ela é bonita, jovem e inteligente,
mas não há jeito, se recusa a viver. Refletiu, desse modo, a
própria existência diante de mim. Impotente, não mais saboreava,
empurrava, antes, as frutas que se impregnaram da acidez da vida do
outro. Terminei, levantei-me, agradecendo-lhe, de forma cortês, o
prazer de tão boa companhia. A dor daquele homem grudou em mim.
Deixei-me penetrar por uma sensação jamais sentida. Havia algo de
etéreo no lamento do desconhecido. Arrumando a cadeira, ouvi-o
dizer, bastante interessante seu modo de encarar a vida, o prazer foi
todo meu.
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