Meio-fio, de Joana Cabral




Meio-fio         

            Minha visão plana, quase rente ao chão. Na verdade, estava rente aos pneus dos carros que insistiam em passar, recolhendo o sangue com os sulcos dos pneus meticulosamente estudados para captar a água da chuva com mais eficiência.
            Acho que a descarga de adrenalina que me invadiu naquele momento serviu de anestésico. As próximas horas depois que recebi a notícia não foram vividas em torrentes de minutos e acontecimentos – corriqueiros ou importantes – como sempre acontecia em minha vida. Algo dormente me segurava em um não-estar tão opressor que fiquei como se o meu peso tivesse multiplicado e não só viver, como o agir também, de um momento para o outro, carregasse uma pressão de cima para baixo me segurando dentro de uma câmara invisível de mal estar, dormência e incredulidade .
            O sangue escorria no asfalto, aderia aos pneus, fugia dele. Eu insistia em ficar a seu lado. Mesmo que a alguns centímetros, olhando para os cílios cerrados, tão grandes... Eu não podia mais pegá-lo, puxar suas mãos e dar tapinhas nos joelhos para tirar a areia que sempre insistia em grudar depois de um tombo. Não, naquele tombo. Nele, eu só tinha permissão de estar perto, enquanto a perícia não chegava.
            Pensava em estancar o sangue, queria desesperadamente que parasse de sair do corpo tão frágil, queria que se conservasse dentro de meu filho, mesmo já morto. Não admitia que nada fosse subtraísse dele; seus dedos, suas unhas, os cabelos, tudo deveria ficar intacto para ser levado ao caixão. Caixão - esse substantivo amplificando seu significado em claustrofóbico horror.
            Ele estava vestido com a camiseta da escola. A bermuda, eu nem reparei que não fazia parte do uniforme quando saiu de casa pela manhã. Um dos pés estava sem o tênis. Olhei ao redor na tentativa de encontrá-lo, que diferença faria?
            Onde estava a perícia? A ambulância? Alguém que retirasse seu corpo do chão. Aproximei e toquei-lhe a mão. A vontade de deitar a sua cabeça em meu colo, mesmo assim, alisar os cabelos eternamente desalinhados... Percebi um tremor. Seria involuntário? Olhei ao redor e só então percebi que não estava só, não era única naquele vácuo, naquele espaço de tempo congelado.
            A simples visão das pessoas, dos rostos, bonés, mochilas, das caras de curiosidade, serviram como impulso para que a grande engrenagem no mundo voltasse a rodar, e o sangue ardeu em meu rosto. O apito estridente do guarda desviando o trânsito rasgou o invólucro; então ouvi, vi e senti, como nunca, o vazio da situação. Os paramédicos cobrindo o corpo, e caminhando em minha direção.
            O barulho era ensurdecedor. Carros, e motos, e buzinas e comandos. Como se o meio da rua fosse o palco de um espetáculo gratuito. E a única que compreendia o enredo era eu! Assistia como se fosse uma estranha. Ninguém se importava muito em me perguntar detalhes ou sentimentos. Deixei-me ficar até que o colocaram dentro de um carro branco com gavetas. Frio.
            Partiram. O carro, a ambulância, e por último, as pessoas. Ainda fiquei um tempo sentada no meio-fio. Olhava o vazio preenchido com o sangue, e o trânsito liberado. Em pouco tempo não restará um único vestígio no asfalto. E a chuva, enfim, que lavará para sempre aquele dia.          
           

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