Minha mãe nunca quis ser costureira, de Joana Cabral
Minha
mãe nunca quis ser doceira, nem enfermeira, ela nunca quis uma profissão dessas
que fazem as mulheres arrumarem os cabelos e os sapatos, como a nossa vizinha,
D. Milena, que era secretária.
Minha
mãe queria ficar perto dos filhos, e por isso, ela escolheu uma profissão
grudada na casa e na família.
O
meu pai achava isso muito bom, porque ele saia de manhã e voltava só no final
da tarde com o pão fresco e quente debaixo do braço.
E
nesta hora, minha mãe estava prontinha com os cabelos molhados no portão.
Era
tudo tão sólido e durável, como o carro verde abacate, o ventilador barulhento
e a televisão que tinha pé.
Até
a umidade que vinha da praia, era mais forte e mais grudenta; o sal e a maresia
colavam na pele e faziam o nariz brilhar.
Ah,
a gente também esperava de cabelo molhado e roupinha caprichada com sapato e
tudo. O final da tarde era uma hora de cerimonia, de ficar sério e sentar à
mesa, quietos, para comer a sopa que esquentava mais ainda o nariz.
Depois
do jantar tudo se dissolvia e a casa, a mesa e a comida mais pareciam um sonho
que meu pai levava com passos seguros para dentro do quarto. O dia ia embora
quieto e devagar, num silencio mais denso que a neblina que subia.
No
dia seguinte após as correrias de comer e vestir roupas de colégio, finalmente
minha casa mergulhava na musicalidade do farfalhar dos tecidos escorregando ao
ronco da máquina de costura.
Minha
mãe nunca quis ser costureira, ela só queria juntar as palavras e tentar contar
quanta alegria via em tudo!
Mas
não conseguia fazer muito verso quando pegava o lápis, tão pequeno, que sobrava
do nosso material.
Então
ela tinha um segredo, costurava as palavras que via nos tecidos.
Cortava
as vogais, emendava as consoantes e alinhavava silaba por silaba. Montava as
palavras e depois as frases. Ao final lá estava a saia que cabia certinho na
cintura da D. Juliana!
O
resto do poema ia no vestido da D. Jurema, ou na calça do Seu Juca, e minha
mãe, somente ela, sabia o que estava escrito, porque as palavras eram secretas.
Quando
começava a cortar um tecido, a história corria junto com a tesoura: e para cada
roupa um desdobramento de aventuras e personagens e vilões de tirar o fôlego!
Minha
mãe sabia que suas histórias andavam pelas ruas, eram admiradas pelas pessoas e
nem precisavam ficar juntas e amontoadas nas vitrines das livrarias.
Sua
literatura era livre e transmitia a poesia mesmo sem perceber.
Ela
não se dava conta de que todos os dias alguém lhe encomendava uma blusa, um
terno ou um vestido com bordados, nem reparava que nunca, nunquinha passava um
dia sequer sem escrever suas histórias e poemas.
Talvez
fosse por causa da poesia que ia junto com as roupas, que uma vez a mulher do
dono da padaria, a D. Luiza, disse que minha mãe tinha um tal de “acabamento
perfeito”. Eu fiquei muitos dias preocupado com aquelas palavras, pensei que se
algo estava acabando, só poderia ser a minha mãe, mas o tempo passou e passou e
eu, ficando ou não preocupado, pude perceber que ela não se acabava.
E
seguia costurando como se cada peça de roupa, alimentasse a sua saúde, o seu
ânimo e o seu desejo de continuar...
E
assim ela foi formando a curva do tempo que pesava em suas costas, uma longa
sinuosidade de histórias que se desenrolassem, dava pra dar uma volta
inteirinha na nossa cidade.
E
quando chegou lá no finzinho daquela curva, seus cabelos já branquinhos, e a
pele um pouquinho mais fina e transparente, minha mãe, de repente não precisava mais contar histórias.
Ficava
olhando para os tecidos e percebia que as letras desapareciam pouco a pouco...
Sem
as palavras não podia continuar o seu trabalho. Não haveria ligação entre um
lado e o outro das pontas do tecido se não fossem para tramar um enredo.
A
busca pelos óculos na gaveta se fazia mais e mais necessária, a esperança renovada
de encontrar as letras perdidas, flutuando sobre os móveis, ou sobre o tapete
do quarto de dormir.
Minha
mãe andava até o quarto, e vasculhava as gavetas da cama.
A
nitidez do olhar era parcialmente recuperada pelos óculos, e ela às vezes,
conseguia encontrar, entre os lençóis, uma ou outra palavra.
Ficava
aborrecida com a fuga de forma tão inédita, mas mesmo assim não desistia de se
lançar na busca, a tentativa de capturar as letras.
Precisava
continuar.
Mas
teve um dia, desses brilhosos e nítidos, que ela viu por sobre a cama, todas as
palavras perdidas. Num movimento decidido, esticou o corpo por cima da colcha e
deitou confortavelmente por cima de todas as palavras. Uma corrente de ideias
num fluxo febril a envolveram e minha mãe se entregou, se jogou, para dentro do
tecido, daquele, que seria o livro de sua vida!
Joana Cabral! Amiga, lindo seu conto! Parabéns! Abraço!
ResponderExcluirObrigada querida!! Muito me alegra a sua mensagem! <3
ExcluirMuito bom Joana, parabéns uma blz esse conto
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