Encontros e desencontros: A busca de Pilar – Capítulo I


Nem o trem abarrotado, muito menos o cheiro das roupas mofadas e com leve traço de naftalina, conseguiam tirar o bom humor que viajava estampado no rosto de Pilar. Morando há três meses em Parada de Lucas, nem sonhava em conseguir um lugar para sentar, já era muita sorte conseguir pegar o trem que vinha lotado desde de Saracuruna!

Era começo de inverno e, embora no Rio só fizesse frio mesmo por uma semana, os cariocas sempre agiam de forma dramática com qualquer vento que soprasse do Atlântico. Mesmo com a certeza de que esse frescor quase não ultrapassasse os altos prédios de Copacabana, ainda assim era motivo para que todos tirassem do armário seus casacos, cachecóis e botas. Para Pilar um casaquinho de moletom com capuz já cobria todas as suas necessidades!

Uns quarenta minutos de viagem e Pilar seguia para o seu primeiro dia de trabalho. Não foi fácil encontrar um emprego, apesar do bom curriculum. Pilar já havia terminado o ensino médio e cursara quatro semestres de psicologia na UFRJ. Se não fosse a insistência em trabalhar como vendedora de uma loja na Central, talvez já estivesse empregada há mais tempo. A falta de experiência no ramo dificultou um bocado, mas ela tanto procurou que acabou por encontrar uma vaga no setor de “Achados e Perdidos”. Melhor do que nada, pensou. E para sua total alegria, era bem no coração da Central do Brasil! Seu único objetivo era estar dentro da estação. Afinal, por ali passavam diariamente algo em torno de seiscentas mil pessoas! Era definitivamente a possibilidade mais forte para encontrar o seu irmão!

Pedro era a única pessoa que sobrou de sua família. Não tinha notícias dele desde que fugiu de casa há quase dez anos, num gesto de rebeldia que deixara o seu pai e a ela também, num crescente estado de depressão!

Os dois foram criados em uma chácara no pé da serra de Teresópolis, onde seu pai era o caseiro. A mãe morrera quando Pilar e Pedro contavam nove anos. Apesar de serem gêmeos, desde cedo apresentaram personalidades bem diferentes; enquanto Pedro tornava-se um menino revoltado com tudo, Pilar, talvez para compensar a vida dura de seu pai e tantos sofrimentos causados pela falta que sua esposa fazia e pelas preocupações com o comportamento de Pedro na escola e com os amigos nos arredores da chácara, Pilar fazia de tudo para ser o mais invisível que pudesse. Sua presença diante do pai era leve e respeitosa. Não trazia a menor preocupação para ele. Comportamento que se virou contra ela a partir do momento em que o pai começou a fazer comparação entre os dois. Ela tirava as melhores notas na escola, o seu quarto era o mais arrumado, era respeitosa, carinhosa, estudiosa… e a cada “osa” que seu pai acrescentava à lista, mais o seu irmão se afastava. Com o tempo a distância fria começou a tornar-se um alivio, e por fim o começo da separação entre os irmãos.

Na noite em que Pedro fugiu, Pilar estava sentada na janela de seu quarto ouvindo música enquanto estudava para o vestibular. Ela ainda tinha dezesseis anos, mas já estava terminando os estudos e queria passar na universidade federal. Sabia que seu pai não tinha dinheiro, mas sua vida era organizada o suficiente para poder concluir o curso com tranquilidade, caso não precisasse pagar uma faculdade! Pedro passou por baixo da janela de seu quarto de assustou-se quando a viu. Ele estava usando boné e a mochila repleta, mais parecia um grande casco de tartaruga. Pedro nada disse, mas o seu olhar, rápido e assustado, contaram toda a longa história de sua angústia! Coisas de gêmeos, coisas de quem já havia se comunicado por meio da pulsação do coração e através de trocas de carinhos e pernadas no ventre da mãe, por infinitos nove meses.

Pilar sabia que ele partia por não poder suportar a si mesmo. Ele não tolerava o seu espelho também, e isso doía profundamente em ambos. Embora ela não quisesse que Pedro partisse, ficou quieta. E no dia seguinte, quando o pai perguntara sobre o irmão, apenas disse que ele provavelmente estaria na escola. Quando descobriram que ele fugira o desespero do pai a feriu mais do que podia suportar! Sentia-se duplamente triste e responsável por mais uma vez, presenciar a dor no olhar do pai.

Ela fez de tudo para que os dias passassem sem problemas, para que a rotina os absorvessem de novo. Deslizava pela casa como uma borboleta, sempre leve e trazendo o máximo de beleza possível. A vida aos poucos foi voltou à pulsação normal. Pilar começou a cursar a universidade, o pai, feliz, segurou-se o quanto pode neste último fio de esperança. Mas com o tempo uma tosse insistente foi minando a disposição daquele homem que mesmo aos quarenta anos, tinha o espirito de um velho. Mês após mês, ano após ano, ele foi minguando… primeiro a filha começou a faltar uma aula aqui, outra ali, na tentativa de ajudar seu pai, para que ninguém percebesse que a chácara já não era mais a mesma. A grama começava a crescer, as flores morriam aos poucos, e mesmo com a ajuda da filha, vieram as reclamações, por fim a demissão e o desespero de não ter para onde ir.

O patrão arranjou um pequeno quarto nos aposentos do novo caseiro e lá eles viveram como puderam, os seus últimos anos. A vida foi se desintegrando, Pilar trancou a universidade, passou a cuidar integralmente do pai e quando o fim já estava bem próximo, ele conseguiu arrancar de sua filha um juramento: Ela iria morar com a tia e procurar irmão. Pedro tinha de saber que o seu pai já o perdoara há muito! Que abençoava a sua vida e desejava que ele estivesse feliz! Logo após terminar seu pedido, fechou definitivamente os olhos. A paz era tanta que por um momento pensou que seu pai estivesse dormindo.

— Vai fazer o pedido ou vai ficar ai só olhando?

A voz estridente da balconista fez com que Pilar voltasse à realidade! Nem sabia como foi parar ali! De repente as lembranças de seu passado não tão distante assim, tomaram conta até de suas ações! Definitivamente não era hora de perder mais tempo ainda com um cafezinho, embora precisasse!

— Não. Obrigada! Só queria perguntar onde fica o escritório da Supervia. Pilar abriu um sorrisinho amarelo.

— Ali, no final daquele corredor, tá vendo? Apontou impaciente.

— Ah, sim, claro! Obrigada.

— Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece! A balconista faz um sinal da cruz, enquanto balança a negativamente a cabeça.

Se percebeu, Pilar não ligou! Seguiu a passos rápidos para se apresentar, pegar o uniforme e começar a trabalhar. Se dependesse do seu entusiasmo, ela seria a funcionária do ano.

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