Encontros e desencontros: A busca de Pilar – Capítulo V


O celular tremia no bolso do casaco, mas Pilar não iria atender. Sabia que precisava voltar ao trabalho, ou mesmo ligar para Nina e contar como fora o encontro com o gerente no restaurante. Não conseguia falar à amiga que o seu irmão, ou melhor, que Pedro, o seu ex provavél irmão, era um ladrão de documentos, ou quem sabe do quê mais…
Uma coisa não se encaixava no relato do gerente! Como que o tal Pedro chegou até o restaurante? E se ele já fizera outra cópia de seu documento, porque ir até lá para denunciar o ladrão? Porque ele não foi à delegacia?  O relógio advertia que já havia passado da hora de voltar para o trabalho, e muito, mas Pilar apertou os passos na direção contrária e em oposição a todos os seus demônios, entrou novamente no ensebado restaurante que há menos de uma hora jurara secretamente nunca mais pisar os pés!
O gerente era tão negligente, ou tudo era tão proposital que Pilar em menos de dez minutos saia do restaurante com o endereço de Pedro na mão. Ela não sabia o que a motivava seguir em busca de informações sobre o homem que estava no hospital! Durante alguns dias ele era o seu irmão, mas a verdade é que Pilar jamais confirmara esse dado! Havia uma certeza ainda não revelada de que ele era especial para ela, mas porquê? Era a pergunta que pairava sobre seus ombros enquanto subia o elevador panorâmico da estação General Osório do metrô, em Ipanema. Apesar do vidro estar opaco por causa da maresia e de camadas de digitais e testas engorduradas, a vista do elevador era linda! Ipanema ia revelando-se à medida que subia e ao ficar acima dos telhados e cobertura dos prédios, o mar estendia-se verde e infinito. Uma pequena multidão de crianças, vendedores e turistas praticamente empurraram Pilar em direção à favela. O contraste vinha junto com a fronteira entre a saída da imponente obra do metrô e as primeiras casas do Cantagalo. Ela não precisava consultar o endereço, até porque era mais uma indicação do que um endereço em si… só não sabia se seria mais fácil ou difícil por isso!  Foi muito fácil seguir à direita e localizar o primeiro barzinho localizado bem próximo à saída do mirante.
— Gostaria de falar com o Dom, por favor.
Um homem calvo, moreno e irônico olhou para Pilar de cima para baixo, um sorriso torto brotando dos lábios finos.
— Você quer avulso ou em pacote?
— Oi?
— Querida, como você vai querer o… cigarro!
O sorriso saiu por inteiro e tinha mais malícia do que ela podia aguentar. Se quisesse conseguir o que foi buscar ali, teria que ser firme e não se deixar intimidar bem na entrada da favela!
— Não. Eu não quero comprar cigarros. Tenho um assunto particular para conversar com o Dom. Quem me deu o seu contato foi o gerente do restaurante da Cinelândia. Ele está? Posso falar com ele?
— Espere um momento. Vou ver se ele pode atender…
Pilar estava gelada apesar do forte calor e do sol que batia direto na pedra em que ela sentou para esperar a resposta do “Senhor Dom”! Fosse lá ele quem fosse, começava a formar uma aura de mistério em sua pessoa com toda aparente dificuldade para simplesmente falar.
O homem que atendeu Pilar, mandou um menino que assistia à televisão dentro do bar, para chamar o tal Dom. O garoto sumiu pelas ruas estreitas em segundos diante dos olhos arregalados de Pilar e na mesma rapidez em que sumiu, surgiu, passando por ela como um pequeno raio que ameaça em dia de chuva. Ele entrou no bar e em segundos o homem chamou por ela no balcão que dava para a ruela.
— Ele vai falar contigo!
— Eu espero aqui? Ele vai descer?
Um sorriso debochado abriu-se de par em par deixando, dessa vez, que uma leve falha entre os dentes aparecesse.
— Não. Você vai ter que ir até ele! Pode subir por essa rua e vira na primeira à direita. Depois segue até o final do beco e espera em frente a uma casa azul. Entendeu?
— Sim. Claro!
As coordenadas pareciam claras, mas o coração de Pilar batia rápido demais para que ela conseguisse respirar e raciocinar ao mesmo tempo. Iria subir, virar à direita e seja lá o que Deus quiser!!!
— Pode ir! Não tem erro! E ele não pode ficar esperando o dia todo!
— Obrigada.
Pilar respirou fundo, olhou para cima e teve certeza, naquele exato momento, de que nada do que pensou daria certo! Não conseguiria informações sobre o homem que estava no hospital e que dificilmente sairia ilesa daquele encontro. Resolveu voltar, não precisava descobrir nada. Não precisava fazer aquilo, não precisava se arriscar por uma pessoa que nem conhecia.
O homem continuava olhando para ela com ar de impaciência. Pilar precisava sair dali rápido e de preferência nunca mais voltar. Virou-se na direção do elevador e quando ia dar os primeiros passos, viu no alto da escada um policial da UPP*, conversando tranquilamente com um senhora que estava sentada na soleira da porta. Que boba que sou! Pensou. E subiu.
Passou pelo policial e fez sua melhor cara de confiança. Sorriu e chegou a uma entrada à direita, como o homem do bar havia dito. Seguiu confiante, a ruela era bem extensa  e Pilar viu-se distraindo com as casinhas amontoadas umas em cima das outras, as escadinhas que davam acesso às portas, as crianças correndo, gritando e os emaranhados de fios de eletricidade! Olhava particularmente para um nó de pelo menos umas cinquenta extensões de fios que saiam apertados e entravam pelos telhadinhos ou pequenos e caóticos buracos nas frentes da casas. Pilar tentava contabilizar a distribuição e os serviços de telefonia e televisão que estariam distribuidos por ali quando sentiu um puxão enérgico trazendo-a para dentro de uma porta. Deu um pequeno grito que logo foi abafado por mãos fortes e pesadas. Lá dentro estava escuro e com cheiro de mofo! Dava para sentir a umidade do local pela roupa que rapidamente colava em sua pele.
O homem sentou Pilar em uma cadeira e amarrou os seus braços para trás, enquanto executava a difícil tarefa de fazer com que ela parasse de se debater e gritar. Em poucos minutos estava toda amarrada a uma cadeira com um pano em sua boca.
Vou morrer, pensou!
Mas o que lhe dava medo naquele momento não era a morte, era o que fariam com ela antes de que a matassem! Era sufocante estar toda presa, no escuro e com um pano enfiado na boca enquanto chorava e engasgava com as lágrimas que não podia secar e com o vômito que insistia em subir e que voltava por não conseguir sair, queimando seu esôfago na ida e na volta!
Vou morrer asfixiada!
— Fica bem quietinha que o Dom já vem.
Pilar não ouviu o que ele falou, estava totalmente concentrada em não vomitar e conseguir respirar. Tinha que esquecer a sua garganta, a situação em que se encontrava e o que ainda estava por vir…
Era impossivel registrar o tempo que estava esperando. Não sabia se lá fora ainda estava claro, não sabia se havia desmaiado ou dormido. Começava a perder a relação com  o espaço e o tempo. Encolhia-se toda a cada vez que ouvia passos do lado de fora e desejava de coração que ninguém entrasse no esconderijo onde estava!
Mas ninguém chegaria pela rua, Pilar não ouviria a porta abrir ou os passos que tanto a assustavam. Pedro estava o tempo todo na sala, quieto no escuro observando o comportamento da moça à sua frente. Ela não era uma pessoa preparada para situações como aquela…
— Quem é você?
Pilar quase derrubou a cadeira ao chão de tanto susto ao ouvir a voz grave e irritada que penetrava na escuridão como uma sentença ao mesmo tempo em que mãos frias retiravam o pano de sua boca. No exato momento em que o ar entrou, o ácido do vômito queimou toda extensão da boca ao mais fundo do esôfago, fazendo com que ela tivesse um ataque de tosse carregado de outro acesso de lágrimas que escorriam pelo rosto desconfortavelmente por não poder usar as mãos para secar.
— Não consigo te ver! A voz saiu arranhada, quase um sussuro…
— E nem precisa!
— Pode me soltar?
— Depende.
— Depende do quê?
— De quem você é.
— Como assim? Ah, você deve estar me confundindo com alguém… eu só queria conversar sobre o rapaz que está no hospital!
— Por isso mesmo! Você é informante da polícia ou é jornalista?
— Eu? Nem um, muito menos o outro! Sou funcionária dos Achados e Perdidos da Central do Brasil…
Assim que terminou a frase Pilar se arrependeu! Como era burra, pensou! Agora estava nas mãos do bandido! Isso se conseguisse escapar dali!
— Então o que você quer saber?
— Quero saber quem é a pessoa que está em coma no hospital. E você é a única pessoa que sabe quem ele é!
— E porque você quer saber isso?
— Porque até hoje, ou melhor, até na conversa em que tive com o gerente do restaurante onde o Pedro… quer dizer… onde o rapaz trabalhava, eu pensava que ele era o meu irmão!
Um par olhos azuis emergiram da escuridão flutuando por trás de uma chama de isqueiro,  e Pilar conseguia ver a perturbação que passava por eles. Era o momento preciso de pescar algo de humano que talvez habitasse ali. Vivia no espaço de sentimento entre o medo e a esperança. Ele chegou bem perto e acendeu totalmente a luz. Os abundantes cabelos negros e encaracolados somavam ao desleixo próprio de seu dono.
— Como assim, você pensava que ele era o seu irmão?
— Me solta que eu conto. Ela sabia que a curiosidade seria mais forte do que a prudência, mesmo se tratando de um homem perigoso. E também, ela não poderia ir muito longe em um território tão estranho.
— Tudo bem – ele falou divertido, um sorriso torto nos cantos dos lábios.
Pilar levou alguns minutos massageando os pulsos e tornozelos, e verificou que felizmente não estava machucada. Se tivesse tato e firmeza, conseguiria sair dali!
— Bem, vim para o Rio há poucos meses, após a morte de meu pai. Moro com minha tia, mas tenho um irmão que não vejo há mais de dez anos… e é por ele que procuro. Pedro, é o seu nome… ele tem o mesmo nome… é…que o seu!
Pilar contou toda  a sua história, todos os passos que já tinha dado até chegar ao rapaz que estava em coma no hospital. Da certeza de que ele realmente era o seu irmão, do desespero de não ter para onde levá-lo após a alta no hospital… Falava com calma, seguida pelo  olhar atento do Pedro-Olhos-Azuis à sua frente. Algo a acalmava agora, não sentia mais o perigo de momentos atrás, talvez por não estar mais amarrada. Talvez…
— Você não pode mais se responsabiliar por ele! Pedro falou quase gritando de tanta irritação.
— Não sei o que fazer. Assinei um documento no hospital e…
— Diga a eles que não é o seu irmão, que foi um erro, que confirmou tudo com o gerente do restaurante… faça qualquer coisa, mas fique afastada dele. Ele é muito perigoso! E se você pensa que o seu único crime é roubo de identidade, está muito enganada!
— Mas, eu prometi que…
— Isso é um aviso! Espero que faça bom uso dele!
Da mesma forma misteriosa que entrou, virou as costas e desapareceu no escuro. Pilar levantou-se, andou de um lado para o outro sem saber o que fazer. Estava numa sala minúscula, somente uma cadeira e uma mesa no canto revelavam-se ao seu olhar. Procurou por uma porta e localizou uma pequena maçaneta fosca, quase fundindo-se com o ambiente. Andou até ela sem muitas esperanças, mas quando pousou a mão, a porta se abriu sem a menor dificuldade!
As pernas tremiam, já anoitecera e havia pouco movimento de pessoas na rua. Pilar respirou o mais forte que conseguiu, o ar que vinha do oceano penetrando em seus pulmões como um sopro de reconciliação com o universo.  Não conseguia andar de forma alguma. Sentou nos degraus da escada e finalmente pode vomitar todo o seu medo.
— Precisa de ajuda minha filha?
Uma senhora de cabelos muito brancos oferecia a mão para que ela pudesse levantar.
— Quer tomar uma água em minha casa?
Pilar seguiu a mulher e ficou por um tempo que não sabia mais definir em sua companhia, os olhos fixos no horizonte negro, os pensamentos em turbulência! E foi a mesma, como um anjo, que a levou até o metrô e ficou na entrada que dá acesso às roletas acenando em sua direção.
— Pilar, onde você esteve, menina? Te liguei o dia inteiro! Que história é essa de não atender ao celular?
— Depois te conto, Nina, amanhã!
— Escuta bem, tenho uma coisa para te falar, e é urgente!
— Então diz…
— O rapaz do hospital acordou! E eles querem que você vá lá hoje mesmo!.
* Unidade de Polícia Pacificadora.

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