Encontros e desencontros: A busca de Pilar – Capítulo IX


Capítulo IX
— Então, Pilar, é hoje que o Bruno vai ter alta, né?
Nina encostou-se no balcão ao lado de Pilar e ficou observando a amiga registrar os objetos encontrados no livro de entrada. Um fino e irônico sorriso de encontro ao pensamento.
— Ele acabou de me ligar, está esperando o plantão da tarde para o seu médico assinar a alta! Nem acredito que esse dia chegou! Assim que sair daqui vou direto para o hospital!
— Mas, você precisa mesmo de estar lá na hora da saída? Ele não pode fazer isso sozinho?
— Tenho que estar lá, sim, para assinar a alta, mas mesmo que não precisasse iria assim mesmo! Que alegria saber que o Bruno agora está totalmente recuperado!
—  E o quarto que você viu na Lapa, deu tudo certo?
—  Sim, aluguei por um mês. Depois ele vê outro lugar mais confortável.
— Alugou com seu dinheiro?
— Nem te contei, né? Fui ao restaurante que ele trabalhou. O gerente pagou pelo tempo de serviço e também as gorjetas. Não é muita coisa, mas deu para alugar o quarto e também vai dar para ele comer por alguns dias. Depois não sei, mas acredito que o Bruno não vai ter dificuldade em conseguir outro emprego.
Pilar olhou as horas e soltou o ar com força. Nem havia se dado conta de que estava ansiosa, só reparou no ato por causa do olhar insistente de Nina e de seu sorriso tatuado na cara!
— E como estão as coisas na casa nova?
— Ah, Nina! Só alegria! Sabia que hoje já está completando dois meses que me mudei pra  lá?
— Nossa, o tempo voa mesmo! Então, você está feliz? Sua cunhada ainda te trata bem?
— Muito! Ela é tranquila e carinhosa. Faz de tudo para que eu me sinta em casa… e tem o Felipinho… Ah meu Deus! Estou apaixonada por ele! Sou a tia mais coruja do mundo!!!
— E eu não sei? Você fala desse menino o dia todo!!
— Quer saber, amiga. Estou tão feliz! Agora que encontrei o meu irmão e tenho a minha família de volta, nunca mais me separo deles!
Pilar admirava a cidade através da janela do ônibus. Uma chuva pesada batia contra o vidro e escorria, insistentemente, fazendo com que as luzes dos postes e das fachadas das lojas brilhassem de forma difusa. Era tão misteriosa a noite, tudo cheirava a paz e um leve prazer percorria o seu corpo só em pensar que mais uma página seria virada em sua vida.
Quantas vezes fizera aquela viagem nos últimos meses. O ir e vir do trabalho para o hospital, do hospital para casa era uma rotina um tanto pesada, mas que ela encarava com prazer. As longas horas dentro do ônibus e os engarrafamentos acabavam por ficar no esquecimento a cada vez que atravessava a porta da enfermaria e recebia a luz dos seus olhos sempre à sua espera.
A amizade foi inevitável e conhecer a sua vida fez com ela desenvolvesse por Bruno uma espécie de amor fraternal. Por nada e por tudo cada vez mais queria proteger seu amigo. Empenhou-se em resgatar o dinheiro que teria direito a receber no restaurante, procurou por um lugarzinho confortável e barato para ele ir quando saísse do hospital, e também fizera questão de decorar um pouco o lugar. Pilar comprou roupa de cama, toalhas, travesseiro e mais alguns itens que julgou de primeira necessidade para uma pessoa que não possuía nada.
Caminhar do ponto de ônibus até o hospital naquele dia mais parecia com o avançar numa alameda sem fim, quanto mais andava, mais distante sentia o percurso. A ansiedade dando voltas no estômago e o calafrio a cada momento em que pensava que em poucas horas estaria atravessando aquele portão com Bruno a seu lado. Não ficaria mais olhando para a fachada do prédio e pensando se ele estaria em alguma daquelas janelas enquanto ela voltava para casa.
Pilar nem precisou ir até a enfermaria. Bruno já estava pronto! A mochila, com todos os seus pertences que ela mesma trouxe para ele em suas visitas, nos ombros. Quando pisou na portaria, ele já estava de pé e com o sorriso de prazer que acendeu todo o corpo de Pilar. O mundo sempre seria ínfimo diante daquele abraço. Dentro dele a entrega, a compaixão, a troca sincera e um sentimento que nascia forte e sólido, como as casas seculares. O campo magnético que os unia,  repelia até quem ousasse olhar para aquele momento que era tão e somente deles!
— Então? Pronto para deixar o hospital?
— Você não faz ideia! Já estou com tudo aqui. A guia da alta, os exames… é só apresentar tudo na recepção e pegar o meu passaporte para a vida!
— Então vamos?
— Só se for agora!
— Bruno, primeiro quero ir lá em cima me despedir das enfermeiras e agradecer por tudo o que fizeram. Por mais incrível que pareça, vou sentir saudades daqui. Ou de vir aqui…
— Eu já me despedi de todo mundo, mas se quiser vou lá de novo com você.
— Eu jamais te pediria isso.
Pilar subiu correndo, um sentimento estranho de saber que provavelmente jamais voltaria ali!
Já eram quase dez da noite quando desceram na Cinelândia. A chuva fina não incomodava os dois. O ar ligeiramente frio e a sensação de liberdade provocavam ondas de arrepios, a adrenalina estava tão alta que eles não conseguiam articular uma conversa coerente. Já no ônibus falaram das enfermeiras, pularam em segundos para o sorvete de casquinha, em seguida falavam de futebol e misturavam tudo de volta com os médicos, enfermeiras e faxineiros do hospital. Falavam alto, chamavam a atenção das pessoas que passavam apressadas e concentradas de volta para as suas casas.
— É ali.
Pilar apontou em direção a um prédio um tanto decadente bem no comecinho de uma subida que, lá em cima, daria no bairro de Santa Teresa.
— Um prédio charmoso!
Sorriu. A voz de Bruno saiu com a ironia alegre de quem já não se importava com nada. Aquele quarto, no hotelzinho cujas atividades eram para lá de suspeitas, principalmente no período da noite, para ele era um refúgio do mundo que não queria, nem pretendia voltar. Por isso mesmo, beirava algo que simbolicamente poderia sugerir um paraíso!
— Vamos subir.
— Não! Pilar, eu preciso tomar uma cerveja. Não posso deixar de comemorar esse momento. Estou feliz, minha cara! Muito!
— Não posso Bruno. Olha só o horário, ainda vou para o Recreio. Você faz ideia do tempo que leva até eu chegar à minha casa?
— Por favor, Pilar! Não posso comemorar sem a pessoa que é a responsável por eu estar aqui!
— Ah, menos, Bruno!
— Como menos? Pilar, sem você eu não passaria de uma semana naquele hospital! Você faz ideia do que é um CTI?
— Não! E, olha, nem quero saber! Mas deixa as comemorações para depois, preciso te apresentar para o senhor da portaria para que ele te dê a chave do quarto.
— Só vou se você tomar uma cerveja comigo! Só uma!
Bruno apertou os olhos, o brilho azul nocauteando a resistência de Pilar que mesmo preocupada com o horário, se deixou levar…
— Tá legal! Só uma. Realmente precisamos comemorar!
Sentaram-se perto da janela, a brisa entrava fresca, facilitando a conversa animada.
— Garçom, traz mais uma.
— Não Bruno. É sério. Agora precisamos ir!
Subiram os degraus pisando leve. As tábuas desgastadas da escada rangendo a cada passo que davam. Um sorriso de crianças levadas a cada vez que um barulho estranho e alto vinha com os seus movimentos.
— Bem-vindo ao lar! Pilar deixou que Bruno entrasse na frente para que pudesse ver as surpresas preparadas para ele. O esforço que ela fez para que o ambiente ficasse minimamente aconchegante, o deixou feliz e constrangido ao mesmo tempo.
— Você é muito especial, Pilar! Não precisava disso!
Bruno paralisou à sua frente. O oceano de seu olhar pronto para transbordar. Ele sabia, e ela também. A força da gravidade que pairava sobre os dois nada tinha a ver com a tempestade que se aproximava. Era o peso de algo que já fora plantado e buscava a oportunidade de rasgar a terra para então poder ter vida própria. Era o cheiro do desejo bem regado e suspenso no ar, como o momento da precipitação da chuva. Os sentimentos revoltos chocando-se em atritos inconcebíveis para as células envolvidas. O instante em que tudo fica suspenso, à deriva da carga de energia que precisava de espaço para se expandir. E como numa atração tão estudada e repetida em intermináveis aulas de química, onde os opostos se atraem, Pilar e Bruno sucumbiram entrando um dentro do outro, em língua, espírito e desejo.
— Meu Deus! Que horas são?
Pilar pulou da cama tonta e assustada. Tateou no escuro procurando o celular, que logo descobriu no chão do quarto e desligado. A bateria havia acabado. Nas pontas dos pés foi até o banheiro e acendeu a luz. Bruno dormia esticado como um felino. Sorriu diante das lembranças da noite que tivera, o coração cheio, um sentimento ancestral que intuía, mas que jamais havia vivido. Plugou o celular no carregador e só então se deu conta de que não avisara ao irmão da demora. Assim que o telefone acendeu, a tela começou a brilhar, várias mensagens e chamadas atropelando-se no espaço tão pequeno do visor.
— Como vou resolver isso?
Já estava quase no horário em que ela saia com o irmão para o trabalho. Ele ia para a universidade, ela ficava na Central. Desde que se mudara para a casa de Pedro, era a sua rotina. O coração de Pilar apertou com a ideia de ter preocupado o irmão. Mas não iria ligar naquela hora. Ele deveria estar em seus últimos minutos de sono e não queria acordá-lo. Até porque não estava pronta para dividir com o irmão o momento único que acabara de viver. Por fim resolveu enviar uma mensagem de desculpas e comunicar que havia dormido na casa de uma amiga. Amanhã encararia o seu irmão. Como estava tão perto do trabalho poderia se dar ao luxo de dormir mais um pouquinho. Acertou o relógio para mais tarde a aconchegou-se ao corpo adormecido de Bruno.
***
— Miga, o que você vai fazer no seu aniversário?
— Vou fazer um jantar lá em casa. É a primeira vez que comemoramos nosso aniversário juntos desde que o Pedro fugiu. Você vai, né?
— Ah, Pilar. Você mora no fim do mundo! Depois é horrível para voltar!
— A Luiza vai. Porque não pega uma carona com ela?
— Mas é claro! Agora fico mais animada… e o Bruno? Ele também vai?
Pilar prendeu a respiração, para depois soltar com toda força possível.
— Ah, ele vai, mesmo contrariado. Afinal, é meu aniversário!
— Seu irmão não gosta dele de forma alguma, né?
— Ele implicou com o Bruno assim que soube que estamos namorando! Meu irmão fica preocupado por causa da forma como ele foi parar no hospital. Ele acha que o Bruno é um bandido em potencial!
— Que coisa mais chata, miga. Como você está administrando tudo isso?
— Eu vou levando. Não dou muita atenção para a implicância do meu irmão. Quanto mais eu conheço o Bruno, mais gosto dele! A vida não foi fácil, assim como a minha. Não vou abrir mão do que eu estou sentindo por causa do Pedro. Um dia ele aceita.
— E lá no restaurante, ele está gostando?
— Pois é, o gerente gosta mesmo dele! No dia seguinte ao que saiu do hospital, o Bruno passou no antigo trabalho para perguntar se eles não sabiam de algum bar ou restaurante que estivesse precisando de garçom. O gerente não pensou duas vezes e o contratou de volta no mesmo dia!
— E ele já conseguiu outro lugar para morar? Aquele hotelzinho é bem caído, né?
— Que nada, ele gosta de lá. Diz que dá sorte! E também é do lado do trabalho!
— Quem diria que há  poucos meses, você vivia igual uma doida parada na saída dos trens tentando achar um rosto no meio da multidão. E agora está morando com o seu irmão e namorando o cara mais gato da Lapa!
— É, o mundo dá muitas voltas, mas uma coisa é certa, tudo tem um fim. Encontramos o botãozinho de “stop” e as coisas se ajeitam, de uma forma ou de outra. Da vida eu só quero duas coisas: Ter minha própria família e nunca mais sair de perto do meu irmão! Para um desejo preciso do Bruno, para o outro do Pedro, então esses dois vão ter que se gostar de qualquer forma!
— Eita Pilar, são quase sete horas. Vamos fechar.
— Até que enfim! Hoje o dia demorou a passar!
Pilar saiu da Central e decidiu caminhar até a Lapa. A rua ainda estava cheia de pessoas e perambular depois do trabalho era relaxante para ela. Passou numa padaria e comprou pão e leite para o café da manhã. Como era sexta-feira, trouxe na mochila roupas para passar o fim de semana com o namorado. Uma rotina deliciosa. A Lapa era o lugar ideal para sair, dançar e curtir a noite.
Quando chegou ao hotel, Bruno já estava esperando por ela. Pilar se jogou em cima da cama e toda a carga da semana foi esquecida nos momentos de intimidade e prazer.
— Quer sair Pilar? Hoje não vai chover. Podemos ir a pé até a Estudantina.
— Ah, não! Eu quero mesmo é ficar aqui até o final de semana terminar! Não saio desta cama por nada! Quero dormir, te amar, dormir, te amar… assim… até o despertador me tirar deste sonho na segunda.
— Então vou pedir uma pizza. Quer a Marguerita ou a de quatro queijos?
— A Marguerita!
Enquanto comiam na mesinha ao lado da cama, Pilar pensava no quanto estava feliz. Depois de tudo o que passou com o seu pai, de viver de favor na casa da tia e após tantas buscas e desencontros, agora acreditava que estava completa novamente! Seu irmão era literalmente a sua outra metade, e Bruno também, de alguma forma completava a sua existência. Um era o amor que acalmava, que trazia o aconchego do ninho, o outro era o fogo, a paixão, um pedaço de sua carne que, inexplicavelmente, tinha a certeza de que não poderia arrancar!
— Está pensando em quê?
— Em nada, e em tudo. No quanto estou feliz agora que encontrei o meu irmão. Em nossa vida tranquila…
Os olhos de Bruno escureceram, algo como o horizonte após o sol se pôr. Um calafrio percorreu o corpo de Pilar. Então…
— Pilar, há dias estou precisando conversar com você sobre algo que me aconteceu.
— Pode falar.
Ela sabia que o assunto iria causar indigestão. Pousou os talheres no prato e tentou ler a mente de Bruno, antes que as palavras saíssem de sua boca.
— Tem a ver com sentimentos?
— Ah, não! O meu amor por você não mudou nem um milímetro, Pilar! Eu te amo! E depois do que vou te falar, te amarei um pouco mais!
— Então porque essa cara de suspense?
— Recebi uma proposta e quero te contar.
— Então fala – A voz saiu fina estrangulada.
— O Carlos, meu chefe, tem um irmão que está montando uma churrascaria em Portugal. Ele quer um gerente de confiança e ele me convidou para o cargo. Meu chefe acredita que eu tenha o perfil para ocupar a vaga.
— Mas… mas você não pode aceitar! Não agora!
— Eu não posso negar, Pilar! Não vê que é a oportunidade da minha vida?
— E nós?
— E nós vamos juntos! Vamos nos casar e vamos como marido e mulher! Uma nova vida em Portugal! O que acha?
— Bruno, eu não posso ir! A lágrimas corriam pelos cantos dos olhos. Pilar fazendo uma força enorme para conseguir raciocinar e retomar o controle de sua vida nas mãos!
— E eu não posso ficar!

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