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O isolamento sem fim de Joel Marques

 

 

Se me permitir, leitor, vou contar a minha história. Vivia há exatos doze anos, três meses e vinte e dois dias sem sair. Já nem me lembrava da última vez em que tive coragem para ultrapassar a porta da minha casa. Conhecia todos os sons do prédio: o despertador do vizinho, os primeiros movimentos do elevador, os banhos e as brigas de todos que viviam ao lado, em cima ou abaixo. Comprava o gás para o aquecedor no inverno e abusava do ar condicionado no verão. Era feliz assim. 

Minto! 

Era o mais feliz que conseguia, desde que comecei a conviver com uma amante caprichosa: A agorafobia.

Sempre senti aquele pequeno incômodo por “não ser normal”, por não ir às festas da família e o que mais magoava; não ter um relacionamento. 

O meu social era a janela, mas, ao mesmo tempo em que várias pessoas da rua eram íntimas para mim, tinha a consciência de que era absolutamente invisível para elas. Até desenvolvi um hábito de dar nome a algumas pessoas mais recorrentes na minha janela: O Nuno entregava o pão, o Felipe levava a filha à escola e a Joana passeava todas as manhãs e tardes com o seu cão. Ficava até preocupado quando qualquer um deles deixava de passar.

Há também os que viviam no prédio à frente, quatro andares, dois apartamentos por piso, cada qual com três janelas, nomeadamente uma da sala, uma da cozinha e uma do quarto. No total vinte quatro janelas expostas ao meu olhar direto.

Não sei se já disse que sou curioso e não resisto a ficar horas observando a rotina dos meus vizinhos. Eram, na grande maioria, pessoas idosas com rotina simples. Ah, não posso deixar de dizer que eles também tinham nomes: no primeiro andar morava um casal, Ana e João, eles têm um filho que no dia 24 de Fevereiro completa três anos (sei porque fiquei na janela uma noite inteira quando vi os pais saírem apressados com toda aquela agitação de quem ia para a maternidade). O morador do primeiro andar era um homem que saia pela manhã muito bem-trajado e voltava ao final do dia sempre com uma baguete em suas mãos. Os outros eram mais ou menos iguais, sem nenhuma exclusividade que me chamasse muito a atenção. 

Mas havia o terceiro andar. 

Ah, o terceiro andar... A janela do quarto ficava bem de frente para a minha e esta me intrigava. A pessoa havia se mudado para o apartamento três anos antes de tudo começar (sim, eu vi o camião com a mudança chegar) mas nunca via ninguém por lá, era tão raro ver a cortina aberta, ver as luzes acesas, ao menos uma sombra a atravessar os aposentos, ou a ver a televisão... O morador não me dava uma hipótese de sequer formular um nome, ou uma biografia. Confesso que a curiosidade me comia a frio, e que bastava um pequeno balançar de cortinas para que toda a minha alma se concentrasse para descobrir o ser que habitava aquele espaço de sobrevivência. Seria homem ou mulher? Novo ou já com idade avançada? 

Ao final de uma tarde ou mesmo noite, debruçado na janela na clara intenção de flagrar um ínfimo movimento dentro do apartamento, sentia-me um pouco desestabilizado. Sem querer começava a desenvolver um certo transtorno obsessivo por ação naquele sítio. Como se, na ausência de algum evento ali, minha vida também ficaria parada, presa, como se o fluxo da existência dependesse de um simples gesto de fora. 

Lembro que uma manhã, uns dois ou três meses após a mudança, cismei que o morador estava morto. Que ele teria entrado no apartamento e que tivera uma parada cardíaca, daquelas fatais, que nem dá tempo de chamar o socorro. Mas depois cheguei à conclusão de que os outros moradores acabariam por sentir o cheiro e todas essas coisas que não conseguimos esconder quando uma pessoa morre.

 

***

 

Mas, como sempre sabemos, para o bem ou para o mal, um dia tudo muda, alguns morrem, outros nascem, um império cai, uma formiga é esmagada. E o mundo vira a rota aleatória para um lugar que permita o seu fluxo passar.

E foi assim que acordei naquele dia de março, nem sei o horário certo, porque resolvi ler até a madrugada e só levantei quando o sol da tarde batia em mim. Acordei um tanto irritado por ter esquecido de abaixar o estore, e fui à janela meio cego enquanto tentava puxar a fita ao mesmo tempo em que protegia meus olhos com a palma da mão. E não sei se por vício, ou por acaso, meus olhos seguiram como uma flecha para o apartamento da frente. 

Parecia uma alucinação, o susto foi tanto que larguei o estore que bateu no aparador com força e escureceu todo o quarto. Foi um desespero de mãos a apalpar a parede em busca da fita para levantá-lo. Atravessei o quarto e depois de tropeçar na pantufa e quase cair no chão, consegui encontrar o interruptor. 

Luzes acesas e tudo se fez acessível novamente. Sem quase conseguir respirar direito puxei com força a fita do estore. Puxei mais uma vez e nada! Estava definitivamente avariado com o mal jeito.

Corri para a sala, de lá também podia tirar minha dúvida e, confesso, que sentia uma emoção estranha diante do suspense que as dificuldades me trouxeram. Atravessei o corredor, passei pela cozinha e finalmente estava diante do que eu mais queira naquela manhã. Puxei a cortina com ansiedade e, apesar de ficar meio cego de novo, lá estava ele, o apartamento misterioso, as cortinas abertas, à minha frente! 

Em minutos já estava com os cotovelos apoiados e uma xicara de café nas mãos. Pensava no porquê de toda aquela mudança. A qualquer momento conseguiria ver meu novo amigo, estava ansioso para começar minha construção de personagem... coisas de esquisitos que não saem de casa, ou de escritores, no fim, é a mesma coisa: somos esquisitos! 

Algum tempo depois e já com os braços quase a doer, vi uma mão aparecer no canto direito da cortina. De duas uma: ou ele iria puxar e abrir mais um pouco ou iria fechar. E como se adivinhasse a minha ansiedade, a mão ficou parada bem no meio do caminho. Não ia pra frente, nem pra trás. Somente o sol batia nela fazendo com que uma enorme aliança reluzisse por todo lado. Meu olhar ficou apurado como o de um falcão.

Ainda bem que não apurei o ouvido, porque no mesmo instante meu telemóvel tocou. 

A mão continuava parada.

O telemóvel insistia.

A mão não se mexia.

O telemóvel gritou!

-Já vou! Gritei de volta.

Corri para o quarto já sabendo que quando voltasse à janela a mão não estaria mais lá!

-Tô, mãe!

-Olá, filho. Já sabes a novidade?

Corri de volta para a janela enquanto conversava com a minha mãe. Como dizer a ela que, sim! Eu tinha uma novidade grande, apesar de nunca sair de casa e que ela estava ligando em péssima hora!

-Claro que não! 

-Tu precisas comprar um computador, entrar na internet, ler as notícias...

Porra! Eu sabia que a mão ia sair de trás da cortina assim que fosse pegar o telemóvel! 

-Para quê, se tenho a mãe?

E a cortina está toda aberta! Perdi uma oportunidade grande e se ele sumir de novo?

-Liguei-te só para dizer que o mundo está do avesso! Surgiu um vírus, e todos agora precisam ficar dentro de casa, não podem mais sair, e é por tempo indeterminado!

Será que ele está em casa por causa do vírus? 

-Então é por isso...

-Por isso o quê? 

-Coisa minha, deixa estar! 

-Ó filho, manda vir um jornal e atualiza-te. Todos estão iguais a ti agora: fechados em casa! 

-Vou mandar vir, mãe. Quando me vens ver?

-Agora já não posso, toda a gente fica em casa, para não transmitir o vírus.

-Ó mãe, então cuida-te.

-Beijinhos.

-Beijinhos.

Desliguei a chamada e fiquei novamente com os cotovelos apoiados na janela. Só ia sair do meu posto na hora em que conseguisse ver o meu vizinho. Este exercício até foi compensador, pois pude olhar pela primeira vez naquele dia que a rua estava mais calma. As pessoas não iam e vinham como o costume e que um estranho silêncio invadia as calçadas, subia pelas árvores e reverberava por cima dos prédios.

Não sei quanto tempo fiquei escutando o silêncio, mas o trabalho me chamava, a consciência lembrando que no dia anterior não havia traduzido uma única página. Maldito livro que me imobilizou entre seus braços por toda uma noite! A merda do deadline estava muito, muito perto e teria que virar algumas noites caso quisesse cumpri-la. Eu sempre conseguia, sempre! 

Só não contava com um pequeno detalhe: Toda a gente estava em casa. Mas que diabos fazia o vizinho de cima, às duas da madrugada? Logo ele que costumava dormir assim que terminava o jornal das dez, resolveu furar a parede para não sei o quê! A sério! Amanhã é quinta-feira! Não vais trabalhar?

Foi aí que me lembrei do telefonema da minha mãe! Eu fiquei o dia tentando descobrir o mistério do apartamento e por fim não trabalhei, nem comprei os jornais. Fiquei ainda mais curioso quando agucei os ouvidos e reparei que o meu vizinho de cima não era o único acordado. Fui à janela, coloquei o corpo quase todo para fora e comprovei que o prédio estava quase todo aceso, e o da frente também! 

-Será que a mãe falou a sério? – pensei alto.

O jeito era verificar. Como estava de madrugada, não dava para comprar o jornal, então decidi tirar as teias de aranha da televisão. A vantagem de ser organizado estava no facto de saber exatamente onde estava o televisor e a ponta do cabo que acabei por embutir numa tomada bem no meio do quarto. O processo foi rápido, embora ficasse um tanto irritado em perder a minha mesa de trabalho para aquela televisão tão volumosa. Imaginava que seria por algumas horas, até que me inteirasse de tudo o que estava a rondar nossa nova realidade, e confesso que muito antes de ouvir qualquer comentário a respeito, já não gostava nem um pouco daquela situação!

Liguei a televisão. Até aquele momento eu não imaginava que nada poderia ser pior do que o pânico. Até cumpria minha sina sem muitos dramas, embora a mente estivesse sempre a desafiar-me. Antiga rival, do nada, ela vinha com um monte de perguntas e incertezas que me faziam sofrer, abalando o pouco equilíbrio que conseguia ter e me fazendo dar uma longa volta resgatando os pedaços da minha autoestima. E aquele “novo estado das coisas”, era, sem dúvida, pior do que o meu transtorno!

Virei a noite nos canais que estavam em direto. Uma metralhadora de más notícias e aquela onda insustentável de incertezas da qual agora minha vida também fazia parte. Quando o escuro da noite começou a rarear no céu à minha janela, quando começava a distinguir as formas no horizonte, lembrei que tinha um dia a menos para a entrega do trabalho. E toda a minha vida e independência estavam alicerçadas naquelas traduções! Afinal, qual editora, nos tempos atuais, aceitaria um tradutor que ainda escreve no caderno, que não sabe – e nem quer – usar um computador? Era imperativo tentar dormir e depois emendaria várias horas na tradução do livro.

Não tive a menor dúvida em tomar dois comprimidos de melatonina, apesar de a recomendação se limitar a um. Fechei os olhos. O quarto ainda no escuro por causa do estore avariado. Já começava o mergulho no universo ao contrário, sedutoramente acolhedor. A consciência deixando-me suavemente, um meio sorriso nos lábios, bem na hora em que o interfone invade todo apartamento! 

-Merda!

Levantei-me tonto e irritado. Se for o gajo me oferecendo outra companhia de eletricidade, vou cometer um assassinato, pensei!

-Tô?

-Olá Joel, é o Pedro. Suas compras já estão aqui. Só não posso mais subir. O Joel tem de descer para pegar.

Não é possível! Estou tramado! O Pedro sabe que não posso descer, ou melhor, não consigo!

-Tô, Joel, então?

-Não posso descer, Pedro! – Disse sem a menor ideia do que faria. – Pode deixar que vou resolver isso mais tarde.

-Tá bem, tá bem.

Desliguei atônito! Como ia descer para pegar as compras? Mesmo sabendo quem sou e já com a rotina de pedir tudo o que preciso por telefone há anos, eles não podiam mais subir! Estava com um novo problema e mais: com sono, duplamente preocupado, dopado de melatonina e absolutamente decidido a resolver a questão depois de descansar um pouco. Fui aos tropeções para o quarto. Ao passar pela sala, o dia reluzindo como se nada de ruim fosse possível de acontecer no mundo. Arrisquei um olhar para poder captar um pouco daquela energia positiva antes de despencar na cama, e quando o olhei para fora, dei de cara com ela! 

Sim, acertou! Ela! Era ela e não ele! A moradora do apartamento misterioso! Paralisei no mesmo instante e nem que tomasse um litro de calmante eu conseguiria segurar a onda de adrenalina que percorreu o meu corpo como o efeito de um choque elétrico! 

Pensei em voltar à cozinha para buscar um café, mas ela me hipnotizou. Estava fincado ao chão sem conseguir ir à janela e comecei a reparar em toda a sua pessoa. Não vou descrever aqui porque de repente o leitor gosta de outro tipo, mas imagina que ela era tão suave e agradável o quanto se pode ser possível e ao mesmo tempo uma firmeza no semblante que seria capaz de ganhar uma discussão só com um levantar de queixo!

Não sei como consegui ver todas estas qualidades de longe, meio escondido entre a luz de fora e a sombra de dentro da sala. 

Resolvi me apresentar e aproximei-me devagar, como se faz com um passarinho que está perto e qualquer movimento mais exasperado pode fazer com que ele voe. Cheguei bem perto da janela, surgindo aos poucos, a luz do sol me revelando, e fiquei frente a frente com Clara. Imediatamente escolhi o seu nome. Talvez por causa da luz que rebatia em seu semblante, fazendo com que tudo nela brilhasse, ou talvez porque aquele fosse o único momento agradável que eu vivia em vinte e quatro horas, tudo parecia meio mágico. 

Comecei por disfarçar, olhei para a rua, depois para cima, simulando um quê de acaso, até, finalmente, encontrar os seus olhos. Algo inédito se deu, ela me olhava! Por não conseguir fazer mais nenhuma outra coisa, segurei o olhar. Segurei o quanto pude, mas Clara mirava-me como aquelas crianças bem pequenas que te encaram do colo dos pais e nunca desviam. É tanta inocência que não suportamos porque estamos sobrecarregados por imensas camadas que adquirimos com os anos. 

Por fim desviei o olhar, sai da janela e covardemente me coloquei atrás da cortina em um lugar seguro, onde ela não poderia me ver. Clara se afastara, estava um pouco mais ereta e continuava com o olhar firme em minha direção. Podia jurar que ela me via. Então sai de trás da cortina e fui para o quarto tentar voltar a dormir. 

Estava bêbedo, afogado em imagens de cabelo, olhos, boca. Afogado em um sentimento que desconhecia e não sabia o que fazer com ele. Tive de apelar para Bach, uma Missa em Si Menor invadindo os ouvidos e expandindo por todo o meu ser. Finalmente consegui dormir. 

 

***

 

Em três dias tudo havia mudado na minha rotina: o meu irmão fazia todo serviço de leva e traz, compra e entrega; todos os meus vizinhos se mudaram para dentro de suas casas e as noites já não eram tão silenciosas como antes; não recebia mais as visitas de minha mãe e irmã para os animados chás nas quintas-feiras; e o pior, tinha de manter uma minuciosa lavagem de desinfeção de tudo o que entrava em casa. Lavar garrafa de vinho com água e sabão era meio exagerado na minha opinião, mas, na dúvida entre lavar e correr o risco de ser contaminado e ter de ir a um hospital, não havia a menor hipótese de não lavar o vinho! Até passava uma boa camada de álcool gel depois!

Imagino que estejas preocupado, mas, sim! Entreguei a tradução para a editora apesar de ter me obrigado a trabalhar na casa de banho para conseguir me concentrar por mais de duas horas sem ir para a janela em devaneios de muito mais horas perdidas. Não foi fácil, pois tinha de ler, fazer as anotações e escrever tudo isso em cima de uma cadeira improvisada de mesa. Este malabarismo todo causou uma dor de cabeça associada com dor nas costas, que me custaram umas dezenas de envelopes de analgésicos e algumas garrafas de vinho.

E por falar em janela, agora era o meu sítio preferido. De duas em duas horas, ia para lá com a desculpa interna de alongar o corpo e ficava na espera de que Clara aparecesse. Ela, por outro lado, correspondia a minha expectativa. Assim que eu chegava na janela, em poucos minutos ela também aparecia. Como de costume ficava me encarando, sem demonstrar o menor constrangimento. Olhos fixos, fortes, felinos, como quem quer capturar uma presa. Talvez ela só estivesse a me confundir com algum conhecido, mas a ideia de “presa” me envaidecia, então preferi esta. Custava-me voltar ao trabalho, mas a certeza de que ela estaria lá todas as vezes que eu aparecesse me trazia algum consolo.

Estávamos alimentando este tipo de relação há quase um mês. Voltei a trabalhar no meu quarto, meti a televisão no guarda fatos e já ia bem adiantado com o próximo livro que traduzia. Estava feliz! O mais que estivera em toda a minha vida até ali. 

E quem disse que o que estava bom não podia melhorar? Um certo dia, perdi-me no trabalho e demorei, acredito que muito mais do que costumava demorar, para ir tomar o café à janela. Assim que sentei na cadeira que deixei exatamente para esse momento, ela recebeu-me com um luminoso sorriso! Aquele gesto era o equivalente – caso fossemos namorados – a um pedido de casamento. Fiquei emocionado, senti naquele momento que era importante para ela. Que eu, o estranho que nunca saia de casa, que era cheio de manias, que nunca esteve com uma mulher... Eu era importante para ela. Correspondi ao sorriso e todo o momento ficou eternizado a ponto de não me permitir mais trabalhar naquele dia. 

Agora tinha um problema: um passo a mais teria de ser dado, ou perderia Clara tão logo a pandemia passasse. Por mais que estudasse alguma forma de abordagem, estava sempre a esbarrar com o pânico de sair de casa! Nosso “namoro” só duraria o tempo em que durasse a pandemia. Acho que em toda a face da terra, naqueles tempos, eu era o único que torcia para não passar.

Nem preciso dizer que naquela noite eu não dormi, muito menos trabalhei, que nem a melatonina fez efeito e no dia seguinte estava cansado, com dor de cabeça e o nariz entupido. O meu corpo todo doía e no mesmo instante tive a certeza de que o vírus havia ultrapassado as barreiras do álcool, água e sabão. A vingança do destino veio rápida, um karma antecipado! Pela primeira vez usei todo o arsenal de vitaminas que minha mãe enviou. Fiz um café bem forte e até tomei o pequeno almoço, o que nunca fazia, somente para que conseguisse detonar o “vírus” tão rápido quanto ele entrara em minha vida.

Fui para a janela desanimado, triste, feio e em pânico. 

Clara estava lá. Presenteou-me com um largo sorriso, ao qual eu retribuí apático. Talvez demasiado apático, pois ela imediatamente saiu da janela. Um tanto apressada, eu vi! Pensei que, tanto melhor, pois seria difícil arriscar o meu “próximo passo” e no dia seguinte ser levado para um hospital. A ideia de sair de casa realmente era como uma sentença de morte. Muito mais do que estar infetado com o Covid-19.

Clara voltou. Muito mais luminosa e bela do que nunca, um sorriso divertido no ar.

 

Como te chamas?

 

            Ela empunhava uma folha de papel com letras em vermelho.

As palavras dançavam à minha frente, tirando-me imediatamente do meu estado de quase morte, desentupindo o nariz e trazendo de volta todo vigor que poderia existir em mim. Algo comparável a um “passe de mágica”. Com certeza os anais da psicanálise poderiam confirmar o que ela acabava de fazer: tirava de cima de mim a responsabilidade do próximo passo. Ele estava ali, atravessando o espaço entre duas janelas, da forma mais simples impossível.

No quarto, peguei o próprio caderno em que trabalhava na tradução, arranquei uma folha e voltei para a janela. Nem deu tempo de ver se era uma folha já preenchida. Voltei com o coração acelerado e escrevi.

 

E tu? Como te chamas?

 

Ela sorriu, pegou no papel e começou a escrever:

 

Eu perguntei primeiro. 

 

Sorri e escrevi meu nome no papel. Ela de volta simultaneamente. 

 

Joel.

Mónica.

 

Sorrimos, cúmplices! Então ela não era Clara? Ao final de um minuto não poderia imaginá-la com outro nome: Mónica. Sim, ela era toda Mónica! Isto era o mais perto que cheguei de um relacionamento e era muito gostoso descobrir uma pessoa. Saber seus gostos, profissão, história... corri ao quarto e trouxe o caderno inteiro comigo. Ia começar a matar todas as minhas curiosidades. Desta vez não criaria uma história para outra pessoa, saberia exatamente como ela havia vivido até ali, suas escolhas, alegrias, família... se era casada (lembrei-me da aliança, que aliás, ela não mais usava). Olhava para o papel, sem saber por onde começar. Já havia amassado umas duas perguntas por pura insegurança. Estava tão concentrado na tarefa que deixei de olhar para o apartamento da frente. Somente voltei a fazê-lo quando ouvi um forte “psiu”. Mónica sorria com uma placa onde nove números flutuavam em direção a mim. O seu número de telefone!

Ela tão sem rodeios, sem problematizar. Aproveitei que estava com papel e caneta nas mãos e anotei aqueles números preciosos.

 

***

 

Antes de mais nada, preciso dizer que a voz de Mónica é suave e firme, confirmando a impressão que eu tive na primeira vez em que a vi na janela, lembra? 

Naquele dia peguei o telemóvel e liguei-lhe.

-Tô?

-É o Joel.

Conversamos por quase uma hora. Ela na janela dela, eu na minha. Falamos de nossa família e de tudo o que estava a acontecer ao país e ao mundo. Consolamo-nos. Não tive tempo de falar sobre o meu “problema”, mas como ainda estávamos longe do pico do contágio em nosso país, tínhamos muito tempo para falar sobre o assunto.

Fiquei tão feliz e relaxado! Trabalhei até o dia amanhecer e acordei com o telemóvel a chamar bem no finalzinho da manhã.

-Vamos almoçar juntos? Ela perguntou.

Quase cai da cama. Como almoçar juntos? Onde? Não podíamos sair!

-É... 

-Não te assustes. Você aí em tua janela e eu aqui. Mete em alta-voz.

Fiquei completamente desorientado. Meu telemóvel não tinha alta-voz, era um modelo tão antigo e funcional. Eu jamais tive vida virtual, não fazia uso de Facebook, Whatsapp, muito menos de um telemóvel com o qual se possa falar em alta-voz! Meu irmão tentou de todas as formas me introduzir a essas tecnologias, mas confesso que achava desnecessário. Era tudo tão superficial e eu, que nunca saía de casa, não tinha nada para mostrar ao mundo! 

-Preciso fazer o meu almoço. Espera um pouco que já arranjo o que comer e chamo-te.

Para superar o fato de não ter alta-voz e também de não impedir o “encontro”, fiz uma sande de queijo e servi uma taça de vinho. Liguei-lhe de imediato.

-Então temos um encontro! Disse ela.

-Então temos. – Ainda bem que estava a uma boa distância, pois senti uma onda de calor subir do pescoço para a face. Sabia que estava completamente vermelho. O leitor pode pensar que é exagero, mas deve ser porque não chegou aos 35 anos sem nunca ir a um encontro com uma mulher. 

-O que está a comer?

-Uma sande de queijo. E tu?

-Salmão com alcaparras e brócolos.

-Parece-me bem!  

-Se quiseres, podes vir jantar comigo hoje.

-Mas não podemos sair à rua! -respondi desesperado! E nem para estarmos juntos!

-Mas, tu não vais para lado algum e eu, bem... eu estou sempre a cuidar-me. 

-Mesmo assim é perigoso! Não achas?

-Não! Já estamos em quarentena há mais de um mês e não temos nenhum sintoma. Isto quer dizer que não vamos passar o vírus ao outro, concorda? – Ela concluiu bastante divertida.

Eu fiquei absolutamente em paralisado. Todo o meu ser quebrado. Chegara a hora de revelar para a Mónica quem realmente eu era. Colocar na bandeja minhas fragilidades, tirar a máscara de tradutor bem-sucedido meio excêntrico que não se rendia a novas tecnologias. Ela descobriria que sou um humano torturado pelo medo e acorrentado pela doença. Um homem que já tinha desistido de lutar para ser “normal”. O personagem que deixei que a Mónica criasse para mim estava a ponto de virar pó, e nem precisou de acabar a pandemia para isso.

-Perdoe, mas hoje não posso. Preciso entregar um trabalho amanhã e vou ficar a trabalhar até terminar. -  Menti.

-Amanhã então? Combinado?

-Amanhã, com certeza.

Só tinha uma noite antes de revelar à Mónica a minha condição neste mundo. Um fraco, um incapaz, um homem que não merecia a sua companhia e de nenhuma outra mulher. Mas como iria voltar à minha vida aguada e sem emoções à beira da janela? Como viver sem ter algo palpável para compartilhar? Eu sabia que não poderia mais voltar para os meus antigos personagens, os que nem sabiam da minha existência e passavam pela rua carregando suas vidas tranquilamente. Eu não viveria mais sem a Mónica!

O dia seguinte chegou, com o tempo nublado a anunciar o que viria a seguir: a queda da máscara do Joel. Fui à janela para respirar um pouco de ar, já que meu quarto vivia na penumbra do estore avariado. O apartamento da frente estava todo fechado. Estranhei.

Peguei o telemóvel para ligar à Mónica e vi que já era mais de meio-dia. Alguma coisa se passou! Ela não atendeu.

Três dias após o nosso primeiro encontro, Mónica não ia à janela e nem atendia às ligações. Talvez ela por algum acaso, tivesse descoberto quem eu verdadeiramente era... e havia desistido. Pensei que ela tivesse ido embora, e que o apartamento da frente voltaria a ser misterioso, só que agora desvendado. 

Até que o meu telemóvel tocou...

-Tô. -A minha voz era um fio...

-Joel, Socorro!

-Mónica, onde estás? A tua janela está fechada.

-Não estou bem. O meu corpo está todo a doer. A cabeça dói muito! Vem aqui, eu não tenho forças...

Ouvi um baque forte de algo que acabara de cair no chão. Chamei sem parar, Mónica não respondia. Liguei novamente, e de novo, e de novo... por fim fui para a janela e comecei a gritar!

-Mónica! Mónica.

Sem pensar duas vezes abri a porta de meu apartamento e num surto de desespero desci escadas abaixo sem calçar o sapato, sem pensar que precisava de uma máscara para sair à rua. Mas quando cheguei na portaria estaquei. Não conseguia lançar-me ao nada, ao vazio do céu sobre minha cabeça. Neste momento olhei para a janela de Mónica e fechei os olhos. Iria de qualquer forma. Estiquei a perna para a calçada e cheguei a pisá-la, mas senti como se um buraco infinito fosse sugar-me sem retorno. Acovardei. Recuei, perdi. Era mais forte do que eu, era mais forte do que o seu amor por Mónica... Depois de algum tempo, até pensei que foi o mais longe que jamais fora por alguém.

Voltei derrotado, triste, incapaz. Mas como precisava fazer alguma coisa por ela, liguei ao serviço de saúde e avisei da urgência de alguém socorrê-la.

Fiquei da janela esperando a ambulância. Assisti a todo o processo. E vi o pequeno corpo de Mônica ser conduzido para um hospital. Até quando?

Nem preciso falar sobre os dias que se seguiram à ida de Mónica. Me sentia um herói falhado, herói porque chamei o socorro e falhado covarde porque não consegui superar o medo, não consegui segurá-la em meus braços enquanto a ambulância não chegava. Eu sabia que Mónica jamais me perdoaria por isso. Por outro lado, pensava que se eu fosse até lá, a probabilidade de também pegar o COVID-19 era grande. Mas em todos os ângulos, inclusive neste, eu era um covarde! Eu deveria ter a coragem de pegar a doença e mais ainda de acabar de uma vez por todas com essa dor que era o meu existir.

Por dias olhava para as janelas fechadas, por dias tentava obter notícias dos hospitais, mas como só tinha um nome era impossível! Era muito difícil conseguir ser atendido, estávamos no ápice dos contágios, o SNS congestionado e eu mais solitário do que nunca sentado de frente para a janela com um café frio e esquecido na mão.

 

***

 

Já havia passado mais de um mês, meu trabalho avançava duramente, o editor me ligando sem parar, todos os prazos atrasados, o país começando a abrir, pouco a pouco, o comércio... meu irmão cada dia menos presente e minha mãe e irmã cada dia mais.

Não sabia se Mónica estava viva ou morta, mas todos os dias ligava-lhe na esperança de poder falar com ela. As janelas eternamente fechadas. 

Estava assim, hipnotizado pelo brilho do pôr-do-sol e com o telemóvel à mão, distraído, triste e sem lugar no mundo, por isto quase deixei o mesmo cair no momento em que tocou, estridente. Desde que foi para o hospital, deixei o som da chamada no máximo do volume. Já atendi sabendo que era ela:

-Tô, Mónica!

-Tenho pelo menos umas duzentas chamadas gravadas em meu telemóvel. - Ela disse divertida, apesar da voz extremamente fraca.

Dei um daqueles sorrisos sinistros de quando estamos muito nervosos e não conseguimos controlar o som que sai de nossas gargantas.

-Como estás? – Perguntei por fim. 

-Viva. – Respondeu. E bem na sua frente.

Olhei para a frente e como as janelas estavam fechadas, desviei o olhar para a rua. Lá estava ela! A razão de toda a minha felicidade ou tristeza. Pequena, extremamente abatida, quase sem cor, as olheiras se viam mesmo com toda a distância e penumbra. 

-Preciso de você. Vem para o meu apartamento. Eu não consigo ficar sozinha...

Naquele momento sabia que era só abrir a boca para perdê-la. Como que uma pessoa no momento mais frágil de sua vida pode ser negada? Mas eu só de pensar em sair e atravessar a rua me dava náuseas. Fechei os olhos e não respondi. Criei um vazio desnecessário entre nós. Ela, lá em baixo do bloco, fraca e fragilizada; eu na janela, forte e covarde! O pânico comendo-me como um verme que era! 

-Joel? Estás aí? Então?

-Não posso! – sussurrei! – Não consigo! – Concluí.

Por fim, entre lágrimas, me sentindo o pior ser que já havia passado pela face da terra, deixando que Mónica escorresse pelos meus dedos, perdendo o maior tesouro de toda a minha vida, contei tudo a ela: do começo da doença, dos tratamentos iniciais, da aversão aos remédios, da dificuldade da terapia, da minha pobre e falhada vida. Por fim ficamos em silêncio, ela com o telefone pendurado ao ouvido, eu com o meu apertado ao estômago enquanto tinha uma crise de choro. 

Mónica esperou o tempo necessário, nem sei dizer agora se foi muito ou pouco, pois quando estamos totalmente entregues a um sentimento, a primeira coisa que perdemos é a noção do tempo. Quando tive forças para olhar de novo para baixo do bloco, nem sabia mais se ela estaria lá... e ela estava, e me pedia em gestos, para que eu colocasse o telemóvel no ouvido. O fiz num gesto desolado, como quem vai ouvir uma sentença. Eu nunca me perdoaria por deixá-la naquele estado, imagina ela...

-Eu posso ir para a sua casa? Podes cuidar de mim?

A fala custou a vir, a respiração também. Ela era a pessoa mais direta e simples que devia habitar a Terra. Sim, ela era.

-Claro! – Foi o único som que saiu da minha boca. Não por vontade própria, mas por pura emoção.

-Vou à minha casa tirar a roupa que vim do hospital e fazer uma pequena mala.

Ela chegou e trouxe na bagagem toda a sua essência, sua ternura, seu pragmatismo.

Os dias se encheram de luz. Eram imensos nossos diálogos, ela contou-me sobre a sua vida, que era viúva há um ano, e que só tinha tirado a aliança do dedo no dia em que me viu na janela. Ela sabia que éramos feitos um para o outro, mas confesso aqui ao leitor que isso são coisas de mulher, que homens não acreditam nessas “esoterices” e mesmo assim eu concordava, e concordava...

Com os dias Mónica foi melhorando, mudava uma coisa aqui outra ali em minha casa. Trazendo os seus objetos preferidos, e por fim, entregando o seu apartamento ao senhorio. Aos poucos as medidas de proteção foram acabando. Mónica voltou ao trabalho e eu continuava em casa, minha vida muito próxima do que era antes da pandemia. Exceto no final do dia, pois tinha para quem fazer algo. Preparava o jantar, botava a mesa bem de frente para a janela e apresentava a ela meus personagens que circulavam pela rua. Falei sobre a Joana que nunca mais passou com o cão. Não sabia se ela havia se mudado para outro sítio ou se era uma das tantas vítimas do COVID-19.

-Vou perguntar a algumas pessoas na rua. Se puder trago notícias dela para ti.

-Será que é preciso saber? – Respondi. -Talvez seja melhor ficar na incerteza, assim ela mantém-se viva. 

Mónica ficou um longo tempo a me encarar, sem dizer uma palavra. Estava pálida e pelo pouco que conhecia dela, sabia que vinha alguma notícia difícil. 

-O que aconteceu? – Antecipei para facilitar o que ela ia dizer.

-Tenho algo a dizer. E adianto que estou com medo.

Fiquei seriamente preocupado, se Mónica, que era a pessoa mais simples e direta que eu conhecia estava sem saber como me dizer algo, era que vinha alguma bomba. E não sabia se queria ou não ouvir. – Diz lá o que é. Se vais ter de me contar, que seja logo!

-Estou grávida! E adianto que não foi planeado. E se não quiseres, posso até interromper a gravidez, mas eu queria... 

Calei a sua voz com um beijo. Fiquei um longo momento abraçado a ela. Precisava recuperar-me para poder dizer tudo o que estava sentindo. A Mónica novamente reinventando novas formas de emoções! 

-Tudo vai mudar! – Ela concluiu.

-Eu sei, mas quero! Muito!

Mónica chorava, aliviada. Era a primeira vez que a via tão vulnerável emocionalmente. Ficamos assim, dentro de uma bolha, cheios de incertezas. Eu com os meus fantasmas alertando para o perigo de ter um filho; e se eu passasse para ele o meu pânico? E se ele achasse que também não conseguia sair de casa? Não queria transmitir a outro ser humano o pior de mim. O eterno incómodo do medo me preenchendo todo. Ela dentro de seus pensamentos e sonhos, ou medos. Assim adormecemos.

A notícia foi dada para a minha família, assim como o pedido de casamento, num animado jantar onde recebi tapas nas costas de meu irmão, incrédulo por eu me casar antes dele. Minha irmã com lágrimas nos olhos emocionadíssima e já dizendo que seria a madrinha e minha mãe... Bem, minha mãe só torceu o canto da boca.

-Não vais fazer uma merda dessas! – ela me disse ao telefone no dia seguinte. E no outro, e no outro, durante toda a semana. – Como vais ter um miúdo se nem vais ao supermercado? Tua mulher cansa de ti em menos de um ano! Não sabes o trabalho que um filho dá! Não sabes como sofri para criar-te a ti e aos teus irmãos! 

Desligava o telefone mais arrasado do que nunca. Não cogitava falar sobre a implicância de minha mãe a Mónica. Sabia que tinha um fundo de razão em tudo o que ela dizia, e a culpa pedia boleia ao medo, alinhada com o pânico e fizeram morada em mim durante um bom tempo. 

-O que tens Joel? Estás distraído, não me ouves... estou há uma hora a falar. O que achas do que estou a dizer? 

-O que estás mesmo a dizer? Perguntei enquanto as palavras entravam uma a uma violando o meu tão preservado bem-estar.

-Estou a falar da casa, Joel! Da mudança! Sei que não quer, mas...

Saltei da minha autocomiseração direto para, o não menor, susto (aliás, nada estava no lugar desde que Mónica havia chegado).

-Mas sair daqui? Ir para uma casa? Mónica tu sabes que eu não consigo...

-Mas pensa, nosso filho pode ter um jardim, uma relva para jogar a bola, uma piscina para aliviar o calor no verão. Pensa!

-Não! Mónica, não! Não consigo!

Levantei-me abrupto e tivemos a nossa primeira briga – se é que pode se chamar ao silêncio de briga – porque Mónica ficou um dia e uma noite inteira sem falar comigo. Eu simplesmente não conseguia brigar com ela. Estava arrasado.

-Queres café? – Perguntei logo pela manhã.

-Não. Quero uma casa. E minha única exigência é você dentro dela! 

Cedi. A nossa mudança para a casa daria uma nova história, por isso não vou contá-la aqui. Talvez um dia, se não aguentares a curiosidade, permito que me envies uma carta que terei prazer em responder, mas peço o favor de não contares a ninguém, pois terei muita vergonha. Só adianto que envolveu um médico e uma dose de óxido nitroso. E eu jurei, morro, mas não digo como Mónica conseguiu tudo isso!

Mudamo-nos, casamo-nos e tivemos Clara – sim, o nome foi em homenagem ao primeiro que batizei Mónica. Ela nasceu em nossa casa, embora eu tivesse preferido não ter de passar por tanta ansiedade. Mónica tranquila, a dar à luz dentro de uma banheira, com uma doula à sua beira. Felizmente tudo correu bem. 

Vivemos em harmonia, embora eu tenha de lutar contra os meus fantasmas a cada dia em que é preciso levar Clara à escola, a cada febre, a cada reunião de pais, e eu ausente...

Felizes, cada qual do seu jeito, até então. Clara, nossa filha, fez quatro anos em fevereiro e pediu-nos para conhecer a Disney em Paris. O presente foi anunciado na hora em que fomos deitar e confesso que sabia que este dia ia chegar. 

-Pode comprar a minha passagem. Vamos em família.

-Tens certeza? – Mónica me olhou com aquele ar simplificado que só ela conseguia ter.

-Sim. – Respondi convicto.

Estávamos a uma semana da viagem. De lá para cá tive todos os tipos de pesadelos possíveis. Já sabia que não conseguiria ir. Da forma como a Mónica me olhava, sei que ela também sabia. Mas não me julga, não me exige nada. 

Seguimos assim, ela sabe que sou diferente. Minha filha também saberá. Talvez um dia a imagem de pai seja mais forte do que o medo, talvez um dia eu me renda aos tratamentos, talvez um dia... 

-Venha cá, Clara, dá um beijinho no pai para que tenha uma boa viagem.

-Tchau papá. No ano que vem tu vens comigo e com a mamã?

-Espero que sim, minha querida. Boa viagem.

Fiquei na janela vendo o táxi que levava Mónica e Clara ao aeroporto. Eu estava calmo, conformado. Ainda não conseguia dar este passo. Mónica sabia, Clara também saberia.

Talvez para o ano. 

A pandemia ficou para trás, acredito que fui a única pessoa que conseguiu encontrar o amor de sua vida em quarentena e que formou uma família sem nunca colocar os pés na calçada. Isto prova que nada na vida é impossível, e que as barreiras somos nós. Tenho mais uma coisa para te dizer, leitor. Vem aqui que vou falar no seu ouvido, para que percebas bem.

- Pode até não parecer, mas de perto, assim, bem de pertinho, ninguém é normal!

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